Confissões de uma treinadora de cães: Capítulo 09.

Existe um conceito criado por aí que prega que os adestradores de cães são mais duros e não tem um real amor pelos cães. É curioso ouvir esse discurso quando não conhecemos bem as pessoas que fazem parte dessa categoria. Eu posso dizer que a maioria dos treinadores de cães, só entraram nessa profissão, porque de alguma forma, queriam solucionar os problemas dos seu próprios cães. Essa atitude, por si só, já configura um tipo de amor, e talvez aquele que seria mais real do que qualquer outro. 

Nessa categoria de trabalho, existem duas vertentes: aqueles que querem tirar apenas a sua sobrevivência financeira, e aqueles que tem uma real paixão pelos cães. Eu separo em duas categorias porque fica mais simples para ilustrar, mas é lógico que todos nós consideramos a nossa sobrevivência financeira, mas nem todos tem paixão por esse trabalho. Eu arrisco em dizer que boa parte tem paixão pelo que faz, até porque, sobreviver nessa profissão não é fácil.  

As dificuldades da vida de um treinador de cães vão muito mais além da questão financeira. Nossos desafios são quase que filosóficos. Pensamos no potencial dos cães, na habilidade dos donos, no ambiente aonde o cachorro vive e nas possibilidades que essa equação traz. É um quebra cabeças que não tem fim e estamos constantemente tentando resolver os problemas dos outros. Olhando de fora, podemos pensar que só um maluco iria escolher isso como profissão, então, será mesmo que os adestradores são esses seres frios, desprovidos de sentimentos, que só pensam em dinheiro? 

Sim, somos mais duros, mas somos assim porque queremos o melhor para os cães. Sabemos que uma criação repleta de liberdades e opções pode ser a condenação desses cachorros, e sabemos também que um discurso leve demais, só acomoda os donos naquele estado de inércia e falta de atitude, que só contribui para o fim dessa relação com o cão. 

Muitos profissionais tem um grande coração, muitos dedicam suas vidas a esses animais e abrem mão de muitas coisas. Trabalhamos aos sábados, domingos e feriados, ficamos com seus cães enquanto vocês viajam, saem com os amigos e se divertem, e passamos pelas fases mais difíceis de adaptação dos cães em cenários diferentes. Deixamos a desejar nas nossas relações de família, nos nossos casamentos e nas nossas amizades, e todo esse tempo de vida pessoal é dedicado aos cães, normalmente de outras pessoas. 

Passamos noites sem dormir, lidamos com a ansiedade dos cães, os latidos no meio da noite, as mordidas e todas as objeções que os cães mostram durante o treinamento. Fazemos tudo isso porque queremos o melhor pra eles, queremos que eles se ajustem, de verdade, no contexto de família. Se isso não é amor, eu não sei o que é. 

Se tudo isso não fosse o suficiente, recebemos críticas diárias, tanto de pessoas sem qualquer instrução, como de colegas de profissão. Quanto mais públicos nos tornamos no universo virtual, mais despertamos o olhar crítico dos policias das redes sociais, que vasculham nosso conteúdo para encontrar alguma coisa ruim e destilar o veneno em cima do nosso trabalho. Isso tudo acontece ao mesmo tempo, dentro e fora do nosso círculo de trabalho. 

Essa é uma profissão que nos testa o tempo todo. Por isso, para sobreviver dentro dela, é preciso ter muito amor por esse ideal. Ser um treinador de cães é ser um idealista, é acreditar que você pode mudar o mundo, um cachorro de cada vez. É saber enfrentar os desafios e querer continuar. É nadar contra maré com vontade. É saber que para cada um passo pra frente que você dá, existem dez pessoas empurrando o mercado de volta para trás. É ser consciente de tudo isso e sorrir, sem deixar nada mais te abater. 

Eu vou ser honesta com todos vocês. Eu penso em desistir, todos os dias. Todos os dias eu me imagino fazendo outra coisa, e deixando esse mercado para trás. Todos os dias eu preciso me cobrar e manter a minha motivação em cheque. Talvez seja por isso que eu sempre tive meus cães. Sem eles, seria difícil continuar. Eles me lembram das minhas obrigações e porque é tão importante ter alguém que represente essa espécie com clareza. 

Uma vez eu ouvi um treinador de cães dizer o seguinte: “se você tem um cachorro, você é um treinador de cães.”. Seu cachorro sempre vai ser o espelho das suas habilidades, da sua motivação e da sua capacidade de educar um animal. Você está sempre treinando seu cachorro, seja de forma consciente ou não. Quem tem cachorro não tem férias dessa posição, e mesmo que você não se considere assim, esse é o seu papel, educar seu cão. 

Eu acho que muita gente não enxerga dessa forma porque o conceito de adestramento é distorcido e vendido como uma atividade específica, fora do contexto de vida familiar, o que não é verdade. Se olharmos para o treinamento como domesticação, tudo que envolve a vida e rotina desse cão está dentro dele. Para aqueles que não fazem nada com seus cães, o treinamento deles é tudo que eles fazem sem a sua intervenção. É quando o cão define a sua domesticação com base nas suas atitudes, causas e consequências, mesmo sem a sua intervenção. Tudo isso afeta a forma como você vive com esse cachorro, já que cada hábito criado pelo cão, sem a sua intervenção, tem um impacto direto na sua vida com ele.

Se você tem um cachorro que late a ataca as suas visitas, e você opta por não intervir, você deixa de receber visitas, e passa a viver no produto que o seu cão criou para você, ou seja, você treinou seu cão pra isso. O mesmo paralelo pode ser feito em uma série de situações, provando assim que tudo é treinamento, mas a escolha de fazer parte dele é de cada um de nós. 

No capítulo anterior eu falei um pouco sobre a minha frustração com os grupos envolvidos em adoções de cães. Se fizermos uma análise sobre todo esse cenário dos adestradores, e toda as dificuldades que enfrentamos, imaginem então como é difícil trabalhar com as instituições que promovem adoções. 

Esses grupos são movidos pela emoção. Tudo que eles enxergam é sofrimento, negligência e o passado terrível desses animais. Propor um treinamento para dar uma chance para esses cães é quase que um convite para ser linchado em praça pública! Somos literalmente interrogados e questionados, como se fossemos criminosos, por esses protetores e muitos deles nos abordam, prontos para um combate. Isso porque a proposta de trabalhar com esses cães é uma alternativa de trabalho voluntário, sem qualquer remuneração. 

Eu me distanciei desses grupos já faz bastante tempo, porque encontrei ali a maior barreira que impedia o sucesso desses cães. Todas as cadelas que eu tenho em casa hoje vieram das ruas, e eu sei como pude fazer a diferença na vida de todas. Ver esses cães em abrigos, e ONGS, lares temporários e santuários, sem qualquer direção, me parte o coração. Qualquer um deles poderia ser uma das minhas meninas, e eu sinto uma tristeza enorme quando vejo que o tempo passa rápido pra eles, e as chances vão ficando cada vez menores. 

Eu quero deixar claro que entendo as limitações desses grupos e sei que quase nenhum deles tem conhecimento ou experiência suficiente para acomodar uma rotina de treinamento com cada um desses animais. Essas pessoas tem um bom coração, mas elas são consumidas pela emoção, pelas trágicas histórias desses animais e por uma carga emocional individual que se acumula com cada resgate e cada cena horrível de um cão sofrido. Eu sei que não é fácil, mas sem um momento de racionalidade, tudo isso se perde, e essa carga emocional passa a ser a real chave da prisão desses cães. 

Eu já acompanhei dezenas de feiras de adoção, e vi de perto como os potenciais adotantes se comportam. O discurso sobre cada cão é sempre muito trágico e os adotantes saem dali com tanto receio de trabalhar com o cachorro, que acabam deixando o pior acontecer. Existe um motivo pelo qual muitas adoções dão errado. Esse motivo está nessa carga emocional transferida pela história do cão, e no discurso feito nessa hora, que define o futuro desse cão. Ele sofreu demais e só precisa de muito amor e carinho. Uma semana depois esse cachorro tá de volta, ou em algum outro lugar abandonado, pra evitar o constrangimento. 

Eu sempre acreditei que o ideal seria termos uma grande parceria entre treinadores e pessoas que resgatam cães. Assim, cada lado faria um papel importante e muitos desses cães teriam famílias definitivas mais cedo, evitando assim o estresse de ter que passar por lares temporários, e idas e vindas de uma casa para outra. Isso só não é possível porque muitos desses grupos não acreditam em disciplina, e usam o passado do cão como escudo para justificar que o treinamento em si pode ser prejudicial para o cachorro. Que ironia do destino.

Para tudo nessa vida existem exceções, e eu sei que existem pessoas que resgatam cães que pensam diferente. Essas pessoas abrem as portas para os treinadores e permitem que essa ajuda aconteça de verdade. Eu aprecio todos vocês, de coração. Parte de mim ainda é idealista e acredita que ainda podemos fazer a diferença. Hoje sou mais cautelosa, me envolvo menos e assisto distante. Tomo mais cuidado aonde devo entrar e avalio até aonde vale a pena o risco. Vamos crescendo e amadurecendo. Aprendemos os limites e entendemos aonde podemos ter um impacto melhor. 

Acho que todos nós profissionais, em algum momento, já pensamos em desistir. Todos nós já avaliamos os riscos e os altos e baixos dessa profissão. Quem fica sabe suas razões, e sabe ouvir a voz do seu coração. Quem vai, sabe que deu o que tinha pra dar. Tá tudo bem, somos diferentes e eu não acho que todos vamos ter o mesmo sentimento sobre essa profissão. Todos nós conhecemos os nossos limites, e vamos até aonde podemos. O importante é saber porque estamos fazendo, seja do jeito que for. No final, prestamos conta apenas para nós mesmos, então o que importa o que os outros pensam? 

No próximo capítulo que quero explorar um pouco mais a questão das ideologias sobre o treinamento de cães, o que mudou nos últimos vinte anos, e quais os desafios que um novo treinador tem hoje quando entra nesse mercado. Vamos explorar o conceito do treinamento antigo e moderno e a interpretação popular de cada uma dessas versões.

Até breve.