Confissões de uma treinadora de cães: Capítulo 18. 

Atitude, postura, determinação. Essas são algumas das características que precisamos desenvolver nessa profissão, não só para fazer um bom trabalho com os cachorros, mas também para podermos ajudar outras pessoas a conduzir seus cães com mais auto confiança e motivação. Não pensem que os problemas que enfrentamos como treinadores só acontecem com a gente! Os donos dos cães que atendemos também passam muito por isso. 

Existe uma dificuldade enorme de dizer não, de zelar pelo nosso próprio espaço, de exigir respeito e de determinar nossos limites, seja de interação e até de intervenções. Na prática, aonde isso afeta as pessoas? Em tudo, eu acho. A maioria das famílias que eu atendo não se sentem confortáveis em advogar pelo espaço de seus cães quando estão em ambientes sociais. Isso significa que elas se sentem desconfortáveis em dizer não para pessoas estranhas que querem interagir com seus cachorros, em múltiplas situações. 

Quando essa característica se manifesta nessa situação, pode ter certeza que ela será avistada em muitas outras. Pessoas assim hesitam muito mais em corrigir seus cães, e normalmente se deixam abater, com muito mais facilidade, pela opinião de estranhos. Validação social é uma necessidade humana, que existe em todos nós, em graus diferentes. Essa necessidade, muitas vezes pode ser a nossa própria condenação. Essa é uma das maiores barreiras que precisamos vencer, especialmente quando decidimos treinar nossos cães. 

Boa parte dos clientes que eu atendo tem essa fragilidade. Os cães percebem isso de forma muito nítida, então existe um paralelo importante aqui de aprendizado. Cães que vivem com pessoas assim, vão forçar mais essa barreira, ou seja, eles vão colocar as pessoas à prova, para ver se elas são mesmo capazes de conduzir essa relação. Esses são os casos aonde vemos o cachorro mudar completamente de postura quando é conduzido por uma pessoa mais segura. Parece mágica mas não é. Isso é uma resposta do que projetamos, simples e imediata. 

Para esclarecer, quando falamos dessa necessidade de validação, estamos falando de um elemento de insegurança e incerteza que muitos de nós temos. Não é apenas o medo de se impor em uma ou outra situação. É a possibilidade de rejeição completa que gera essa enorme hesitação. Quando somos crianças, aprendemos na escola a viver em grupos. Aprendemos a dividir uma sala de aulas, aprendemos a fazer atividades juntos e a viver dentro das mesmas regras determinadas pelos professores. 

Essa etapa de nossas vidas é muito importante porque aprendemos a equilibrar a balança entre as nossas necessidades individuais e o que é necessário para a sobrevivência do grupo. Aprendemos a abrir mão de algumas coisas pelo bem de todos. Perdemos aqui mas ganhamos ali. Inclusão. O que ganhamos nesse momento é a oportunidade de pertencer. O grupo parece ser sempre mais forte do que o indivíduo sozinho. 

O grande problema aqui é o processo de evolução, que para muitos não acontece. Uma vez que entendemos o valor do pertencer, precisamos evoluir para criar e desenvolver o nosso próprio nicho de convívio social, aquele aonde podemos determinar as nossas próprias regras e limites. Isso é natural para os animais, e por isso, na natureza, eles amadurecem, deixam o grupo original, e seguem sozinhos para criar uma nova família, sob a sua própria liderança. 

No mundo animal existe um paralelo muito parecido com o mundo humano. Para cada 10 indivíduos, temos 1 ou 2 que evoluem para esse patamar naturalmente. Os demais se contentam em ser apenas membros de um grupo já estabelecido. A natureza é perfeita nesse sentido já que se todos evoluíssem para uma posição de mais auto confiança, teríamos muito mais conflitos entre essas figuras fortes, e poucos grupos sólidos formados. Talvez seja uma maneira natural de organizar as espécies, deixando que apenas alguns indivíduos com natural aptidão estejam à frente da tomada de decisões. 

Voltando para a natureza humana, o fato de uma pessoa não ser instintivamente auto confiante, não significa que ela não possa trabalhar para desenvolver essa habilidade. É totalmente possível mudar, mas para isso, existe um processo de auto avaliação. Reconhecer é preciso, e querer mudar é essencial. 

Eu estou fazendo toda essa viagem na psicologia humana porque pessoas assim, precisam virar essa chave para poderem viver bem com seus cães. Como eu disse anteriormente, cachorros percebem essa característica com muita facilidade, e quando isso acontece, ou a pessoa trabalha para mudar isso, ou o cachorro toma a frente. 

Esses são os cães que não levam seus donos a sério mesmo. Eles simplesmente não enxergam essa capacidade de intervenção na pessoa, então fazem as coisas da forma que querem, sem qualquer receio de retaliação. Liderança é um termo muito usado no trabalho de adestramento e comportamento canino, mas muita gente não entende muito bem como fazer isso acontecer. Liderança é mais do que determinar as regras e aplicar consequências. Liderança é uma postura constante, que define a sua essência como indivíduo. 

Explicando melhor, podemos trazer exemplos disso para o nosso convívio diário com nossos cães. Liderança começa com responsabilidade, logo, tudo que envolve a vida desse cachorro depende de você. Não no sentido emotivo da coisa, mas no sentido prático mesmo. O cachorro caminha com você, come com você, usa o banheiro com você, interage com você e descansa de acordo com a sua determinação. Mais do que isso, você é responsável pelo conduta e segurança desse animal, em qualquer situação. Você também é responsável por domesticar esse animal, motivar e corrigir, e determinar as regras de convívio com ele, mesmo que isso exija algumas batalhas. 

Batalhas são muito comuns com cães de personalidade mais forte. Lembrem que esses são os indivíduos que não querem ser apenas membros de um grupo, eles querem o seu próprio reinado. É aqui que você precisa mostrar quem você é de verdade. Esse animal não vai ser convencido com facilidade e pode esperar que ele vai bater de frente com você em muitas situações. Esteja pronto pra isso! Essa batalhas precisam acontecer, e só depois delas vemos um cachorro diferente.

Essa é a fase difícil para muitas pessoas. Quando eu falo de batalhas, eu não estou falando necessariamente de brigas físicas. Muitos cães que desafiam seus donos, assim o fazem apenas ignorando tudo que eles querem. As batalhas muitas vezes são psicológicas. É o jogo de xadrez. Eu já vi muitos cães assim, e eles só começam a te dar um pouco de atenção quando você realmente mostra para que veio. É quando precisamos fechar o cerco e criar toda uma nova rotina aonde esse cão só faz as coisas com você. Isso requer muita determinação.

Isso é o que acontece com todos os cães que fazem treinamento intensivo aqui comigo. Todos começam nesse ritmo, e ao longo da primeira semana eu já sei quem são aqueles de personalidade forte, e aqueles que aceitam esse formato sem maiores objeções. Boa parte deles, no final da primeira semana, já sabem o que fazer. Alguns me chamam para a batalha, e assim vamos. 

Não é fácil mudar, e eu posso dizer que manter esse ritmo exige muito de nós. Eu pego pesado nessa estrutura com os cães porque quanto mais rápido eles aprendem, mais fácil fica viver com eles a longo prazo. Quanto mais cedo colocarmos as cartas na mesa, melhor. Uma vez estabelecida essa relação de liderança, todo o resto é manutenção. A sua posição continua a mesma, seu alerta está sempre ali, mas a dinâmica de convívio já flui com mais naturalidade e menos intervenção. 

É importante lembrar que liderança, como toda a postura e conduta individual, também requer um certo grau de validação. Todos nós buscamos isso mas precisamos ter muito cuidado aonde procurar esse elemento. Na minha experiência particular, o que sempre me ajudou foram as escolhas pessoais que eu fiz sobre meu tempo e hábitos. Fatores de influencia são a chave aqui. Televisão, internet, redes sociais, amigos, família e circulo profissional. Somos um produto do que consumimos todos os dias. 

Eu parei de ver televisão em 2011. Não sei nada sobre a programação, novelas, artistas ou fofocas. Vejo filmes em DVD e assisto algumas coisas no Netflix, mas muito pouco. Redes sociais são para o meu trabalho, e evito passar mais tempo do que o necessário ali para evitar ser influenciada pelas modas do momento. Não escuto rádio e nem faço ideia de quais são as musicas da moda. Escuto alguns podcasts de pessoas que eu admiro, acompanho canais de profissionais competentes e leio muito sobre assuntos que me interessam. Tenho um circulo de amizades menor, mas produtivo. Minha programação social se resume a encontros e bate papos com pessoas que eu gosto.

Em resumo, eu simplifiquei a minha vida e meu circulo de influencias, e passei a ver o mundo com outros olhos. Hoje as modas não me afetam, os meus hábitos são mais condizentes com a minha personalidade, e é muito mais fácil pra mim identificar o que é real e o que é ilusão. Isso me ajudou a trabalhar de uma maneira mais efetiva com meus clientes e mostrar pra eles como é possível sair dessa teia de influencias. Parece bobagem falar que televisão, internet, rádio e redes sociais podem ter todo esse poder na formação de opinião das pessoas, mas é real gente! Uma vez que saímos desse labirinto, tudo fica mais claro, e a partir dai começa a nova trajetória de descoberta sobre quem nós somos de verdade. 

No próximo capítulo eu quero explorar mais essa questão da conduta humana já que, na minha opinião, está aí o segredo para um futuro mais promissor para os cães. 

Até breve.