Confissões de uma treinadora de cães: Capítulo 10.

Toda criança tem sonhos. Idealizamos o nosso futuro de acordo com a realidade que temos naquele momento e nas coisas que desejamos conhecer e alcançar, e eu não fui diferente. Quando eu era bem pequena, eu quis ser dentista, agrônoma entre outras coisas, mas eventualmente eu cresci e meu ideal era seguir uma carreira de detetive. Por essa vocês não esperam hein? 

Mas é verdade. Eu queria entrar na academia de polícia e seguir uma carreira investigativa, talvez no FBI. Quando eu morei nos EUA eu cheguei a cogitar essa possibilidade. Conversei com muitos policiais e perguntei sobre a carreira. Eu queria mesmo seguir esse caminho. Vocês podem estar se perguntando como eu fui de detetive para o treinamento de cães e qual a relação, se é que existe alguma, entre essas duas carreiras? Eu vou chegar lá.

Eu sempre gostei de mistérios, quebra cabeças, e a reconstrução de caminhos desconhecidos. Por isso a carreira investigativa sempre me atraiu. Eu lia muito sobre casos criminais e meus amigos achavam que esse era um hábito mórbido, mas minha atração não era o crime em si, mas a sua motivação e encontro de solução. Era ai que estava o quebra cabeças mais interessante. 

As descobertas sobre motivação humana podem esclarecer muitas coisas, que vão além da esfera criminal. Entender a mente humana nos traz uma percepção melhor sobre comportamento social humano, dinâmicas familiares, hierarquia profissional e facetas instintivas de cada indivíduo. Agora estamos chegando mais perto do paralelo sobre a minha profissão de hoje. 

Outro aspecto interessante sobre práticas investigativas é a reconstrução de cenas passadas para entender ou tentar visualizar um cenário que causou o crime em si. Pensando por esse ângulo, essa atividade nos permite avaliar um cenário com poucas peças, e tentar preencher as lacunas com padrões de comportamentos passados, chegando assim, mais próximo da interpretação real. 

Agora vamos os paralelos desse meu interesse por investigação criminal e o meu trabalho como treinadora de cães. Quando eu comecei a trabalhar em diferentes casos, em cada um deles eu tinha uma quebra cabeças para solucionar, de uma certa forma, um mistério. As informações que eu tinha eram os problemas, e eu precisava saber o que perguntar, o que verificar, e o que avaliar, para encontrar a solução. Eu precisava aprender a desenhar um padrão de comportamento humano e canino, com variáveis de respostas, e tentar aplicar tudo isso no desenho de uma possível solução. 

Um treinador de cães é muito mais do que um simples prestador de serviços, como já falamos em capítulos anteriores. Nosso papel vai bem mais além do que ensinar três ou quatro comandos. Hoje o treinador de cães é um tipo de detetive, que entra na cena do crime e precisa encontrar a solução. Eu vou além. Mais do que encontrar a solução, precisamos entrar na mente dos donos, e reconstruir uma percepção que vai ser a raiz motivadora para perpetuar essa solução, à longo prazo. 

Quando eu mencionei que queria trabalhar em unidades como o FBI, era nesse ponto que eu queria chegar. Lá atrás, eu lia muito sobre essas primeiras unidades que foram criadas no final dos anos 80 dedicadas aos estudos da mente dos criminosos. Até então, a justiça se preocupava em apenas apreender os criminosos, mas não tinha ainda uma base de dados para estudos de padrão de comportamento, perdendo assim a oportunidade de interromper esse ciclo mais cedo e evitar que essa figuras criminosas agissem por anos sem detecção. Essas unidades começaram um trabalho de trás para frente. Os estudos começaram com os criminosos já apreendidos, por crimes graves, e a ideia era entender a motivação. 

Olha mais um paralelo ai! O termo motivação é muito usado no adestramento de cães, e normalmente é usado para criar uma associação positiva à essa argumentação. Mal sabem os leigos que tudo que um assassino em série precisa é de motivação. É uma comparação meio macabra, mas de importante consideração. Eu falo regularmente que motivação é o que você usa para fazer um comportamento se multiplicar, seja ele bom ou não. Motivar está associado à adicionar, somar, aumentar, então tendemos a receber essas palavras com uma resposta emocional positiva, mas sem contexto na argumentação, podemos facilmente nos perder nessa interpretação.

Quando as unidades de estudos forenses começaram a trabalhar nos casos criminais, a ideia era desvendar quem eram cada um daqueles criminosos. Era importante entender o seu passado, a sua infância, suas experiências como jovem, e sua dinâmica familiar. Era explorado também o ambiente aonde aquele indivíduo cresceu e viveu, as atividades que ele exercia ali e como seu circulo social funcionava. Todas essas sessões de análises tinham como objetivo entender a motivação dos crimes e porque o impulso de agir era maior do que o de se controlar.

Mais uma vez podemos fazer muitos paralelos aqui com o trabalho de treinamento e comportamento canino. Boa parte do que eu acabei de descrever é o que fazemos nos casos que atendemos. A diferença na nossa categoria de trabalho é que a nossa análise é dupla, e envolve o cachorro e o humano da situação. A análise de personalidade, ambiente, interações e atividades diárias é feita em cima do animal e de cada humano na equação, então nosso desafio pode ser até maior. No final, não queremos levar ninguém à julgamento e sentença, mas sim mediar e tentar manter essa relação viva, sem mais violações. 

Mais do que isso, precisamos reconstruir hábitos e percepção, de ambos os lados. É nessa etapa que entra a nossa habilidade de observação e instrução. É como fazer uma casamento em ruínas voltar a funcionar, sem que ninguém vá parar da cadeia. Não basta identificar os sinais e os problemas, é preciso agir e atuar com intervenções. 

Eu falei mais cedo sobre identificação e leitura de padrões de comportamento, e esse é um dos paralelos importantes sobre essas duas carreiras. Um bom investigador ganha experiência na leitura e identificação de padrões com experiência em casos diversos. No trabalho com cães não é diferente. Quando estudamos cada caso que envolve problemas de comportamento, nos quais trabalhamos, podemos identificar esses mesmos padrões. Vemos hábitos entre humanos e cães bem similares, vemos percepções distintas sobre o cachorro, vemos também uma necessidade de validação social, entre outros pontos. Com exceção de pequenas variáveis, começamos a desenhar ai, as possíveis soluções. 

Conforme vamos ganhando experiência, vendo uma multiplicidade de casos, nos tornamos mais proativos na tomada de decisões que chegam nas soluções. O mesmo acontece com os grandes investigadores. São eles que encontram pistas com muito mais facilidade e conseguem ligar pontos na narrativa que passam longe da percepção dos demais. Vivendo e aprendendo, essa é a lição.  

Além do meu interesse pelos casos criminais, em alguns deles, eu lia livros escritos por figuras envolvidas. Essa leitura me fez aprender sobre percepção individual. Eu uso muito esse termo porque sem essa noção, partimos do princípio de que a forma como vemos o mundo, e nossa realidade, é universal, e isso não é verdade. Em um dos casos mais famosos da década de 90, eu li mais de 6 livros sobre o mesmo crime, escritos por pessoas diferentes. Alguns escritos por advogados de defesa, outros pelos promotores, amigos da vítima, amigos do acusado e etc. Em cada um deles era possível ver uma percepção. Se eu tivesse me limitado a ler apenas um livro, provavelmente a minha interpretação do crime seria fortemente influenciada por essa única narrativa. 

Quando trabalhamos com famílias e seus cães, precisamos estar preparados para lidar de frente com percepções, muitas vezes completamente contrárias as nossas. É meio chocante no início mas o nosso papel é identificar essa percepção para entender como podemos ajudar nesse processo de reconstrução. O cachorro em questão depende dessa nossa habilidade de tradução, e sem isso nada funciona. 

Outra hábito que eu tenho até hoje, é de escutar debates, sobre assuntos diversos. Eu gosto muito de temas que envolvem investigações criminais, mas escuto debates sobre outros assuntos também. Escutar um bom debate é aprender sobre argumentação e construção de narrativas. É aprender como lidar com opiniões diversas e encontrar uma porta de entrada para ganhar os ouvidos de quem te escuta. Esse é um hábito que eu recomendo para todos os treinadores de cães, afinal, a grande reclamação da classe de adestradores é que os clientes não cooperam com o treinamento e não seguem as instruções. Talvez a chave esteja aí, na nossa habilidade de argumentar devidamente sobre a nossa filosofia. 

Em resumo, na minha essência eu acho que juntei meu lado detetive, filosófico e passional no meu trabalho com cães. Tudo que aprendemos na vida podemos usar em diversas situações então nenhuma carreira necessariamente te define, mas você pode usar tudo que aprendeu, em todas elas, para avançar na categoria de sua escolha. Eu ainda vou compartilhar com vocês, num próximo capítulo, sobre a minha experiência nos EUA, a minha carreira da indústria de tecnologia da informação, e como toda essa fase também me ajudou a chegar até aqui. Lembrem, nem tudo começou com cachorros, mas de alguma forma, eles se beneficiam de cada uma dessas etapas da minha vida. 

Até breve.