Confissões de uma treinadora de cães: Capítulo 11.

 Quando eu era criança, até a minha fase adolescente, eu fui esportista, jogava tênis, mas não como um hobby, e sim como uma carreira no rumo profissional. Nessa fase da minha vida eu aprendi muito sobre disciplina, o valor de um treinamento consistente, a importância da versatilidade de habilidades de um indivíduo, e como tudo isso fazia a diferença para um bom jogador. 

Eu aprendi a lidar com disputas, divergências, controvérsias e competição. Aprendi cedo a defender meu espaço e contar com a minha habilidade de superação. Tudo isso fez uma diferença enorme na minha vida, e faz até hoje. Dito tudo isso, quando parei de jogar, já aos 16 anos, fui conhecer o mundo normal, ou seja, só aí eu fui descobrir o que as pessoas da minha idade, que não estavam no esporte, faziam. 

Eu absolutamente detestei esse mundo real. Nada daquilo fazia sentido pra mim. As festas, as bebidas, as noites de farra. Pra que, eu pensava? Tudo era muito estranho. Nessa período eu queria ir embora para os EUA. Eu nasci lá, então tenho cidadania americana, logo eu poderia ir embora e ver se o mundo, do outro lado do mapa, era melhor pra mim. Lembro que falei com meu pai sobre isso e ele disse: “Tudo bem, basta você ter dinheiro pra ir que você vai”. Eu fiquei indignada e pensava comigo: “Como que eu vou conseguir juntar dinheiro sozinha, nessa idade, pra ir embora? Eu ainda estou na escola?”. 

Naquele momento a lição para mim era sobre mérito. Não basta apenas querer, é preciso construir, se dedicar, e encontrar seu caminho, independente do que os outros podem te dar. Eu comecei a trabalhar nessa época, mesmo ainda estando na escola. Assim, eu poderia começar a construir o meu caminho, pra um dia chegar lá. Claro que eu aprendi a gostar da vida de adolescente e me diverti bastante como todos os jovens fazem, mas a ideia de ir embora ainda estava lá. 

No ano 2000 eu finalmente decidi que era o momento, me organizei e avisei que estava indo. Um parte de mim sempre foi diferente do universo em que eu vivia e eu precisava descobrir aonde estava esse outro pedaço. Fui  sozinha, sabendo que iria encontrar alguns amigos brasileiros que estavam por lá, pelo menos no primeiro momento. Eu estava segura do que queria, e sabia que dali pra frente minha vida iria mudar, e mudou.

Morei na Califórnia no primeiro mês, mas logo depois mudei para o Texas, o estado aonde nasci. Lá conheci pessoas novas e comecei do zero, mesmo já tendo feito faculdade, ou seja, independente da minha cidadania americana, eu cheguei como todo imigrante, trabalhando aonde podia. Fui garçonete, manobrista, vendedora de loja de roupas, caixa de lanchonete, agente de viagens, recepcionista de escritório, agente de cobrança, babá de crianças até conseguir um emprego na área de tecnologia da informação. 

Hoje, quando olho pra trás, posso dizer que cada uma dessas profissões me ensinou muito. Toda a disciplina que eu tive na minha fase adolescente caiu como uma luva nessas posições que eu tive que ocupar. Aprendi a valorizar o trabalho pesado, aprendi sobre humildade, companheirismo, cooperação e compreensão. Aprendi a controlar a minha impulsividade e engolir seco coisas que eu não suportava. Aprendi a apreciar cada conquista e aprendi que em qualquer profissão, por mais simples que pareça, você pode se destacar, se mostrar o seu melhor. 

Eu tive três empregos ao mesmo tempo porque queria poder ter uma vida melhor. Trabalhava na empresa de tecnologia das 6 da manhã até as 3 da tarde, depois fazia um turno como garçonete no restaurante e ainda trabalhava de manobrista nos finais de semana, nos horários de almoço e jantar. Era carga pesada, mas eu queria poder honrar a milha escolha. Meus pais não mandavam dinheiro pra mim, logo, eu tinha que me virar. Eu corri muito estacionando carros e cheguei a ter uma lesão no joelho, mas segui em frente. Eu limpei vaso sanitário de lanchonete, ajoelhada no chão, antes do turno terminar. Eu servi pessoas rudes nos restaurantes sem reclamar. Eu fiz o que tinha que ser feito para me bancar.

Muitas vezes não foi fácil. Cheguei a viver um ano comendo apenas a comida que o restaurante me dava. Minha geladeira tinha apenas uma garrafa de água e as sobras de comida do restaurante, mas eu estava feliz, essa era a vida que eu sempre quis conquistar. Minha casa, meu espaço, meu domínio. Conheci muita gente bacana, de vários países, com o mesmo perfil. Pessoas batalhadoras, dedicadas e vorazes. Mesmo com os altos e baixos, conseguíamos nos divertir. Fiz amigos incríveis, e posso dizer que foi o período da minha vida aonde mais aprendi. Foram lições de vida que nenhuma faculdade pode te ensinar. 

Me casei lá, me separei, tive grandes decepções mas tive grandes vitórias também. Vi na televisão ao vivo o desastre do 11 de setembro, e vi muita gente sofrer. Vi muita gente se unir também, pra se ajudar. Nessa época, eu nem sonhava em trabalhar com cachorros. Eu sempre amei os cães mas tudo isso era muito longe da minha realidade, e eu só apreciava os cachorros de longe nessa época. Depois de 5 anos voltei para o Brasil, para trabalhar na mesma empresa que eu trabalhava lá. Vim para liderar uma equipe nova que eu teria a responsabilidade de treinar. Muita gente me pergunta porque raios eu voltei. Nem tudo é simples e a vida nos faz refletir sobre muitos detalhes que nos fazem reconsiderar. 

No período que eu estava lá minha avó morreu, minha tia morreu, meu sobrinho nasceu eu estava ausente. Vi uma amigo meu brasileiro, que morava perto de mim, ter uma emergência médica, sozinho, e se não fosse o suporte dos amigos, só Deus sabe o que seria dele por lá. Eu sempre fui mais independente emocionalmente falando, mas tenho muito amor pela minha família e sabia que estava na hora de voltar. Tinha também um boa oportunidade de trabalho aqui, ou seja, de alguma forma, o universo conspirou para que eu voltasse. 

O motivo pelo qual eu estou compartilhando tudo isso com vocês é porque essa fase foi determinante para que eu me tornasse quem eu sou hoje. Quando larguei esse universo corporativo e fui trabalhar com cães, tive que contar com todas as minhas habilidades adquiridas nessa fase para me destacar. Eu não queria ser mais uma treinadora de cães, eu queria fazer a diferença de verdade. Eu queria descontruir os estigmas do adestramento e trazer essa linguagem para um lugar mais próximo da vida real das pessoas que tem cães.

Não se enganem sobre o trabalho de adestramento gente! Não basta apenas ser bom tecnicamente no que você faz. Você agora é um empreendedor, um dono de um negócio e tem muita coisa que você precisa aprender para se destacar. O meu histórico no universo de tecnologia da informação me ajudou demais. Eu construí o meu próprio website, desvendei os mecanismos do Youtube e Google, e soube navegar nos primórdios das redes sociais. Eu aprendi a aplicar, no meu trabalho com cães, toda a inovação que a tecnologia tinha disponível e assim comecei a me destacar. 

Em todos os empregos que eu tive nos EUA, eu tive que aprender observando os outros, sem exceção. Lá, diferente daqui no Brasil, ninguém pega você pela mão para te ensinar nada. Você tem uma semana para observar, e acompanhar um outro funcionário, para aprender tudo sobre aquele cargo. Depois disso, você anda sozinho, e se falhar, tá fora. Eu lembro até hoje do primeiro dia em que trabalhei como manobrista. Era uma festa de família num bairro residencial privilegiado. Eu e uma amiga brasileira chegamos, e os carros começaram a chegar. Tínhamos que estacionar os carros na rua de trás, dois quarteirões depois da casa. Chegou um Jaguar e o gerente apontou pra mim e disse: “vai você lá”. Eu congelei por dentro mas não podia demonstrar insegurança, então fui lá. Eu nunca tinha visto um Jaguar na vida, mas tive que estacionar. Eu suava que nem Tim Maia na última música de um show e foi um dos dias mais tensos da minha vida, mas depois disso, tudo ficou mais fácil.

Eu lembro que nessa fase dirigi todos os carros que sempre sonhei em ter. Peguei um Porshe, edição limitada uma vez sem saber. Depois o gerente me disse que apenas 100 unidades desse veículo foram feitas. Eu achava aquilo sensacional, e mesmo sendo um trabalho simples, aprendi a valorizar todos esses pequenos momentos de confiança que eu ganhava. 

O paralelo que eu posso fazer aqui é simples: aprendizado depende de você, da sua disposição, e vontade de fazer acontecer. Ser um bom treinador de cães exige de você o mesmo que seria exigido em qualquer outra profissão. Ser bom no que você faz, é ter uma visão mais ampla do mercado aonde você atua e saber enxergar caminhos ainda não explorados. É não pensar pequeno nem seguir uma fila, fazendo apenas o que os outros fazem. Quem se destaca hoje, lá atrás arriscou fazer alguma coisa que ninguém tinha feito antes, de uma maneira inovadora. 

O sucesso não é garantido pra ninguém, e nem toda carreira que começa bem, vai ser a promessa do seu futuro. Eu tive que tomar muitos tombos, e tomo até hoje, para entender o que funciona pra mim. Eu ainda penso, todos os dias, em como inovar, e ser diferente. Eu quero muito que essa nova geração de profissionais entenda isso. Hoje temos tecnologia para levar nosso conhecimento ao redor do mundo. Uma alma de empreendedor não é uma alma de vendedor, mas sim um espírito de inovação que tem que despertar dentro de você.  

Eu acredito que tiramos proveito de muitas lições que tivemos ao longo da vida, e podemos usar tudo isso em qualquer profissão que escolhermos. Eu sei que uso muito do que aprendi nesse período no meu trabalho até hoje, e tento fazer melhor todos os dias. Essa jornada não tem um fim definido, e se não soubermos identificar as lições importantes, deixamos nosso possível talento morrer.  

No próximo capítulo eu vou falar sobre como eu vejo o perfil dos treinadores de cães aqui no Brasil, e aonde eu ainda vejo as grandes lacunas presentes. Tem muito espaço vazio ainda para ser ocupado, mas vamos explorar esse assunto no próximo capítulo.

Até breve.