Confissões de uma treinadora de cães: Capítulo 08.

Em Junho desse ano, 2021, eu passava no pet shop aqui do bairro para comprar algumas coisas e encontrei com a dona, que é uma amiga minha. Ela me parou para me falar sobre uma cachorrinha muito medrosa, que tinha sido resgatada de um acumulador, pela mesma moça de tinha resgatado a Emma. Ela me disse que essa cachorra até tinha possíveis adotantes, porém, por conta do comportamento dela, seria muito difícil achar alguém que pudesse assumir essa responsabilidade sem riscos. Ela me disse: “você topa fazer a reabilitação dela”? 

Na época, eu estava com uma cachorra aqui fazendo treinamento intensivo, mas pensei: “porque não?”. Essa cachorra era bem pequena e eu poderia ajudar, dando a ela assim uma oportunidade de ter uma vida melhor com uma possível família. A moça que resgatou a Emma é uma pessoa de coração enorme, e eu sabia que ela não tinha recursos nem experiência para lidar com um caso assim. Combinei com o pessoal de buscar a cachorra na semana seguinte, e dia 20 de Junho lá estava eu, de frente com a Pippa. 

Quando eu cheguei, ela estava num daqueles pequenos canis de grade que existem nos pet shops, dentro do banho e tosa, aonde os cães aguardam depois do banho. Ela estava toda encolhida e encostada no fundo da parede, imóvel. Abri a grade e fiquei esperando. Cães assim tem pouco contato com pessoas, então é preciso ter muita paciência para não causar um impacto negativo e desencadear uma mordida nesse primeiro encontro. 

Fui aos poucos, deixando ela me estudar. Depois de 45 minutos eu consegui tirar ela de lá. Depois disso pedi para as meninas darem um banho nela, e na hora de secar, ela entrou em pânico, urinou e defecou muito e tentou morder a menina. Eu peguei ela, enrolei na toalha e trouxe ela comigo pra outra sala de consulta. Fiquei com ela, secando bem devagar, apenas com a toalha por mais um bom tempo, até ela dormir. Depois, coloquei ela na caixa de transporte, e fomos pra casa. 

Pippa era a típica cachorra que cresceu num universo de negligência. Assustada, sem qualquer referência humana, ela fugia de tudo. Ela provavelmente teve muito pouco contato com pessoas, e passou boa parte da sua vida (senão toda) em algum lugar fechado, rodeada de dezenas de outros cães, sem nunca ter saído para ver o mundo de verdade. Eu já tinha visto cães assim e sabia como esse processo funcionava. Eu não tinha qualquer dúvida que poderia ajudar essa cachorra a virar esse jogo e conquistar seu lugar numa família de verdade. 

Voltamos pra casa, deixei ela descansar bastante. Depois fomos para os trabalhos. Coloquei a guia fui apresentar a casa pra ela. Como esperado, ela mostrou mais resistência para sair da caixa, mas eu persisti, e ela veio. Aprendeu aonde era o banheiro, a água, e aonde ela poderia deitar. O primeiro dia que tentei levar ela pra caminhar foi outro desastre! Essa cachorra fez um show! Se jogava no chão, travava, e não queria andar de jeito nenhum. Ela conseguiu ser pior do que a Emma, mas com a Prong Collar, depois de duas quadras de briga, ela andou, e como andou! 

A Pippa aprendeu a caminhar em um dia, e nunca mais olhou pra trás! Diferente da Emma, essa cachorra não era de fato insegura, mas sim inexperiente, e uma vez que ela viu o mundo lá fora, ela queria sempre mais. Nessa época, eu estava com a Pietra aqui, uma cachorra que estava no intensivo e a Pippa chegou justamente na fase boa de exposição social do treinamento, então ela foi junto com a Pietra para todos os lugares. No final da segunda semana aqui, a Pippa já tinha ido até pra uma festa de aniversário de criança, ou seja, já era outra cachorra.

Logo quando ela chegou, eu fiz uma página aqui no site anunciando esse projeto de treinamento de cães para adoção, e tinha certeza que seria um sucesso, afinal, quem não gostaria de adotar um cachorro já bem treinado? Seria incrível e assim eu poderia ajudar muitos cães na condição da Pippa. Eu não tinha nenhuma intenção de ficar com ela, e essa possibilidade nem passava pela minha cabeça. O tempo foi passando, e mesmo com o público vendo o progresso dela, e como ela estava indo bem, ainda assim, não recebi nenhuma proposta de adoção. 

Aquilo me intrigou bastante, mas me fez ver uma realidade triste sobre o mercado de cães para adoção. Muita gente diz amar os cachorros, muita gente diz querer adotar, mas quando uma oportunidade como essa surge, todos desaparecem. Porque? 

Ficou muito nítido pra mim que existe um apelo enorme quando os cães estão em estado grave, seja de saúde, ou de condições de vida de forma geral. Postagens que mostram cães desnutridos, machucados ou largados na calçada, tendem a ter uma visibilidade grande, mas uma vez que o cão progride todos desaparecem. É como se o ser humano gravitasse para a tragédia, o lado mais triste e dramático da situação. Não que isso se materialize em adoções reais, eu até acho que não, mas existe uma aglomeração virtual maior de atenção nesses momentos, por alguma razão.

Talvez seja a nossa necessidade de querer salvar, de ajudar, ou de mostrar que somos desse time, já que existe uma diferença grande entre curtir uma postagem e levar o cachorro pra casa, mas o ponto aqui é, se esse público, que diz que quer ajudar, é tão grande, porque será que esses cães não são de fato adotados? E porque um cão treinado tem ainda menos apelo para adoção? 

Eu acredito que é nesse momento que vemos como o treinamento de cães tem muito pouco valor aos olhos das pessoas, e como esse elemento, que fez toda a diferença na vida da Pippa, no final, acaba sendo desconsiderado e até desmerecido por todos aqueles que dizem ter um grande coração. O adestrador acaba sendo o vilão porque ele não pinta o cão como vítima, e assim faz com que o mesmo saia da lista dos coitados que precisam se adoção. 

É uma grande armadilha. O cão precisa ser sofrido para ser um bom candidato para adoção, mas quando for adotado, se der problemas, ele é descartado de novo porque “não se adaptou.”. O cão já treinado, que precisa apenas de uma família que esteja disposta a levar o treinamento adiante, não é mais um coitado, logo não tem o mesmo apelo, e as famílias que pensam em adotar querem ser as salvadoras desse cão, mas não conseguem se ver nesse papel. Já que o cão já não vive mais nesse estado de negligência então uma coisa cancela a outra, e assim é o fim dos treinamentos de cães para adoção. 

O tempo foi passando e a Pippa foi ficando, e é claro que eu adorei ela. Uma vez que ela quebrou essas barreiras do desconhecido, ela se soltou completamente! Pippa é divertida, animada, bem disposta e a única cachorra aqui de casa que adora a Emma! As duas se deram maravilhosamente bem e finalmente a Emma tem uma companheira que gosta dela verdade! Ela passou a fazer parte do nosso time e completou quatro meses aqui ontem. 

A Pippa é um exemplo de um projeto que eu sempre quis fazer para ajudar cães que precisam ser adotados. Eu queria que ela fosse a primeira de muitos que teriam uma chance, mas no final, essa chance foi só pra ela. Eu prometi que não vou mais pegar cães de adoção para treinamento. Vou me limitar a trabalhar em casos aonde o cão já tem dono, nada mais do que isso, do contrário, um dia eu acordo e estou com 40 cachorros na minha casa que não tem pra onde ir, e isso é fora de cogitação. 

Talvez, nessa confissão de hoje, fique clara uma grande frustração minha. Essa realização de que existe uma incompatibilidade enorme entre os que as pessoas dizem e o que elas fazem. Não me levem a mal gente, eu amo a Pippa de coração, e agradeço todos os dias por ter tido a oportunidade de ter ela pra mim, mas foi muito triste ver como uma proposta como essa não despertou mais motivação por parte de toda essa comunidade que pensa em adotar. O mais curioso é ver a quantidade de pessoas que eu atendo que adota cachorros e passa por diversos problemas, especialmente nessa fase inicial de adaptação.

No final eu acredito que voltamos ao mesmo obstáculo que sempre tivemos no universo dos cães, que é a percepção do animal distorcida e como qualquer tipo de proposta que envolva disciplina, não é bem vinda aos olhos da maioria da população. A Pippa é um grande exemplo que mostra como um cachorro pode mudar, e mudar rápido, quando está nas mãos de alguém experiente, que não tem pena do animal, mas é justo, e mostra como a vida pode funcionar melhor com direção. Infelizmente essa visão ainda é combatida e muitas vezes vista como maus tratos, por incrível que pareça. 

Há quem diga que treinamento, seja ele qual for, é injusto com o cão. Olha que ironia! Se eu não tivesse sido objetiva na minha estratégia com a Pippa, ela estaria até hoje dentro da caixa de transporte, sem nunca ter saído na rua, e como medo até da própria sombra, mas pra muita gente isso seria o ideal. Assim ela continuaria frágil, inexperiente, insegura, e faria muito bem o papel de coitada aos olhos da população. 

A Pippa é o motivo pelo qual eu faço diferente. É por ela que eu brigo contra toda essa ideologia hipócrita que usa as tragédia dos cachorros como bandeira eterna de marketing para promover campanhas, propagandas e influenciadores digitais. Todo esse pessoal que condena treinamento, condena técnicas e equipamentos de forma geral, tem um objetivo em comum: manter os cachorros no pior estado possível para que eles possam sempre ser a fonte de renda infinita para um mercado de ilusões. 

No próximo capítulo eu vou explorar em mais detalhes esse mercado de ilusões, o que tem sido vendido como verdades e como os cães tem sido literalmente destruídos nesse processo. Vamos falar sobre as polêmicas na arena profissional, e como o público em geral é programado organicamente para rejeitar tudo aquilo que poderia salvar muitos desses cães. 

Até breve.