Confissões de uma treinadora de cães: Capítulo 07.

Nos primeiros dias de Outubro de 2019, com a minha vida toda organizada com a Lucy e a Kika, lá vou eu para mais um desafio: a Emma. Como eu comecei a contar no capítulo anterior, esse era um Sábado de muito calor. O pet shop aqui do bairro estava promovendo uma feira de adoção de animais e a dona do local tinha me pedido para passar lá para avaliar uma Maltês que já tinha apresentado comportamentos questionáveis e não poderia ser adotada por qualquer pessoa. 

Inicialmente eu não sabia se conseguiria ir pois tinha um cliente marcada nesse dia, no horário do evento, porém, por algum milagre divino, ela me ligou e pediu para remarcar. Já eram 11 horas da manhã e a feira tinha começado as 8, ou seja, lembrei da foto que eu tinha visto da Emma, quando minha amiga veterinária me mostrou, mas eu tinha certeza que a essa altura do dia ela já tinha sido adotada. Ela era bonitinha e meio cor de creme, como um labrador ou golden retriever, por isso achei que ela seria levada bem rápido.

Coloquei meus chinelos, minha mochila nas costas e levei uma guia, só pra garantir. Fui caminhando sozinha, pensando que ela não estaria mais lá, mas, dobrando a esquina, olhei para o cercadinho e lá estava ela, com as patas debruçadas na grade, a língua pra fora, olhando na minha direção. Corri na direção do cercadinho e fui direto nela. Estava um dia muito quente, quase 36 graus de calor, então eu disse: vou levar ela lá dentro pra tomar uma água e ficar um pouco no ar condicionado. 

Pedi para as meninas darem um banho nela e fiquei esperando. Minha amiga veterinária morreu de rir e disse para a moça responsável pela feira: “Pode trazer um formulário porque essa já foi adotada.” Eu tenho que confessar que foi um momento muito instintivo meu. Ela era a coisa mais fofa do mundo, e eu me apaixonei de cara. Ela era uma filhote de quase 5 meses. Pra mim esse era um momento novo já que a maioria dos cães que eu tive já vieram adultos, e o último filhote que eu criei, dentro do meu apartamento, tinha sido o Zico. 

Claro que eu tive o meu racional ativo naquele momento também. A idade dela favoreceu porque apesar de ela ser uma filhote, ela já tinha sido castrada e vacinada, e já tinha idade e tamanho para começar os treinos e acompanhar o ritmo das meninas aqui em casa. Eu amo filhotes mas antes dos 4 meses eu não quero, de jeito nenhum! 

Depois do banho, e muito bate papo com o pessoal do pet shop, era a hora de vir pra casa. Coloquei a guia nela e pensei, vamos caminhando. Sem chance! Essa cachorra tinha pânico até da sombra das pessoas na calçada então, peguei ela de volta no colo, e fomos de volta pra casa. Vim caminhando com ela nos braços e pensando: “Que loucura é essa que você fez? Outro cachorro, logo agora que estava tudo indo tão bem...”.

Por outro lado, a Emma estava ali para renovar, para abrir novos caminhos e trazer uma motivação a mais pra mim nos treinamentos. Essa seria a minha cachorra diferente, aquela que seria a minha grande companheira no futuro e teria o melhor treinamento que eu já pude dar. 

Chegamos em casa, coloquei ela para usar o banheiro, comer e beber água. Depois disso preparei a caixa de transporte pra ela, e ela foi descansar. Emma dormiu a tarde toda, o que é normal. As feiras de adoção deixam os cães muito agitados e o calor naquele dia estava infernal. No ar condicionado ela desmaiou. Acordou no final da tarde e agora era real, eu tinha que começar os trabalhos com ela. 

Eu lembro que ela se mostrou bem insegura, mas com um certo grau de curiosidade. Ela já começou com a dieta natural, e adorou logo de cara. Fui trabalhando aos poucos com ela nesse primeiro dia, e assim estava eu, agora com três cachorros novamente. Na manhã seguinte, depois de uma boa noite de sono eu pensei: “vou caminhar com essa menina”. Decidi descer com ela sozinha e ver como ela se comportava, apenas na guia unificada. Uma catástrofe total! Essa cachorra queria sumir, se jogava, queria correr e fugir de tudo que via pela frente, então voltei pra casa e pensei comigo: “só a Prong Collar salva!”.

Na segunda tentativa coloquei ela na Prong Collar, fiz uma introdução aqui dentro de casa mesmo, e fui com ela e as meninas junto. Ela se mostrava muito atraída pelas cachorras, e assim eu vi uma janela de oportunidade pra quebrar essa barreira e fazer ela caminhar. Essa foi a nossa primeira caminhada juntas, e mesmo ainda meio sem jeito, ela foi. A barreira maior estava quebrada, e depois de alguns dias comecei a trabalhar com ela sozinha na rua. 

A Emma teve um processo totalmente diferente de todos os meus cães anteriores. Com ela eu fiz questão de trabalhar muito individualmente. Uma semana depois que ela chegou nós começamos o trabalho na e-collar. Eu ministrei um curso nessa época e levei ela comigo. Ela foi em todos os cursos comigo durante 1 ano. Eu fiz muita coisa com ela sozinha porque sabia que a diferença de idade entre ela e as meninas era de dez anos, então a nossa rotina seria mais puxada, pensando no futuro.

Emma floresceu maravilhosamente bem. Ela se tornou a cachorra mais fácil e mais agradável de ter como companhia em qualquer lugar por conta desse processo. Apesar dela gostar muito da Lucy e da Kika, foi extremamente importante dividir essa janela de aprendizado e passar muito tempo apenas trabalhando com ela sozinha. Ela viveu muitas experiências importantes e superou muitas barreiras de insegurança assim.

Emma também viveu de perto muitos dos treinamentos intensivos de outros cães aqui em casa. Isso foi muito importante pra que ela aprendesse a respeitar o espaço de outros cães e entender as limitações de interação. Ela adora outros cachorros, mas é ingênua e meio desajeitada, então apesar do tamanho, ela tende a ser bem mais submissa do que qualquer outra coisa. 

Com humanos ela já é diferente. Kika e Lucy gostam bastante de pessoas e lidam bem com isso mas a Emma não. Ela é a cachorra desconfiada, que não gosta de toque físico ou aproximação de estranhos. Ela lida muito bem com a presença de pessoas em qualquer lugar, contanto que ninguém toque nela, e isso eu consigo apreciar, já que essa é uma lição importante sobre respeito de espaço, entre humanos e cães. 

Emma ficou com um tipo físico bem atlético. Ela é magrela e comprida, e tem bastante disposição, mas ao contrário das meninas, com ela eu trabalhei de cara em cima de muito controle de impulsos. Eu sabia que a vida dela não seria uma maratona então preparei ela desde o início para isso. Sempre fizemos caminhadas leves e longas, ela aprendeu a caminhar na esteira, mas ela aprendeu também a ficar quieta, em casa, mesmo quando tem energia para fazer muito mais.

Ela aprendeu a ficar bem na caixa de transporte, a noite e durante o dia, desde cedo, sem causar problemas. Ela tem uma insegurança mas com direção ela sabe lidar com uma série de situações, sem causar problemas. O único problema que eu tive com a Emma foi o xixi dentro da caixa de transporte. Essa cachorra fez xixi dentro da caixa por seis meses seguidos! Minha máquina de lavar nunca trabalhou tanto, e eu cheguei a acreditar que isso nunca ia mudar, mas mudou. 

Muitos cães que não passam por uma fase de higiene nos primeiros meses de vida podem fazer isso. A Emma foi encontrada no lixão perto da represa de Guarapiranga aqui em São Paulo, junto com outros cães. Esse é literalmente um lixo, ou seja, alguém jogou ela fora, e ali ela teve que se virar. Era de se esperar que nesse lado ela fosse demorar um pouco mais para se adaptar. O curioso é que ela aprendeu bem rápido o lugar do banheiro aqui, mas demorou mais pra aprender a regular a bexiga. Demorou seis meses mas ela aprendeu, e isso é em bom exemplo de que consistência pode alcançar bons resultados. Eu poderia ter desistido da caixa de transporte por conta disso, mas não desisti e ela só teve a ganhar.

A Emma fez dois anos esse ano, e a história dela ainda está bem no começo, mas ela foi a cachorra que me fez renovar. Eu tenho que confessar que muitas vezes fazer esse trabalho é difícil, lidar com os clientes é difícil e antes da Emma eu já queria desacelerar. Ela me trouxe mais motivação e com ela eu descobri muitas coisas. Foi desafiador mas foi muito importante para nós duas. O tempo passa muito rápido e parece que foi ontem que ela chegou aqui. Mas assim é a vida dos cães, passa como um raio, e se a gente não aprecia cada momento, a gente perde tudo isso. 

Depois que a Emma estava bem acomodada aqui, é claro que eu disse pra mim mesma que não pegaria mais nenhum cachorro. Meu plano era ficar com as três e curtir cada uma delas até o fim. Pela diferença de idade, provavelmente a Emma seria a minha última cachorra e ela viveria comigo por um bom tempo depois que a Kika e a Lucy fossem embora. Esse era o plano, até que a vida me mostrasse o contrário. 

No próximo capítulo eu vou contar mais sobre a história da Pippa, e como ela me fez refletir sobre a percepção do mercado de adoções de cães. Existe uma diferença grande entre o que as pessoas dizem e o que elas fazem, e existe uma razão pela qual tantos cães vão passar a vida esperando uma família de verdade. Mas tudo isso e muito mais no capítulo seguinte. 

Até breve.