Confissões de uma treinadora de cães: Capítulo 06.

Em meados de 2012, eu estava começando um novo projeto, um sonho daquela época, o meu espaço para trabalhar com cães. Naquele ano toda a minha energia, disposição e dinheiro foram para isso. Zico, Malu e Lucy constantemente me acompanhavam nas obras do lugar, e quando tudo estava quase pronto, surgiu a Kika. 

Minha amiga lá da Granja Viana, a mesma que encontrou a Malu e a Lucy nas ruas, tinha encontrado a Kika. Era uma época de muitas chuvas, como agora, e a Kika tinha sido vista por ela numa estrada de barro, sozinha, com alguns filhotes. No primeiro momento minha amiga não a recolheu. Ela já tinha 11 cães na época e não podia acomodar mais um, porém a Kika ficou na cabeça dela. Alguns dias depois ela voltou lá. Não tinham mais filhotes, mas ali ela estava, sozinha, sem nenhuma cobertura, apenas perto de um sofá velho que tinha sido descartado na beira da estrada. 

Minha amiga a levou pra casa, e comentou comigo sobre o caso. Eu não tinha nenhuma intenção de pegar mais um cachorro e nem conseguia imaginar como seria viver com 4 cães aqui no meu apartamento, porém, eu estava abrindo um espaço novo, com mais de 600 metros quadrados, logo, ela poderia ficar lá, já que estaria sempre sendo bem cuidada por mim e meus funcionários, num espaço dedicado pra isso. E assim ela veio, antes mesmo do espaço inaugurar. Eu já tinha meus funcionários contratados e tínhamos sempre alguém que dormia lá. Todos nós iriamos fazer a nossa parte e ela seria a minha mascote. 

Eu lembro que minha amiga trouxe ela numa sexta-feira. Eu me comprometi a passar o final de semana lá com meus cães e deixar tudo bem ajustado para a semana seguinte, assim eu poderia monitorar bem essa nova cadela e ver como ela iria se comportar com a minha turma. Eu lembro que quando ela chegou minha amiga disse: “Raquel, ela late tá?” E lá ia eu de novo, com mais um cachorro que late! Mas tudo bem, eu estava disposta a ver como ela era para tirar as minhas conclusões. 

Assim que ela chegou eu vi que ela tinha uma marca no pescoço, provavelmente de coleira. Parte dos pelos estavam faltando, como se ela tivesse usado uma coleira por muito tempo e a pele não respirava. Ela já deveria ter tido algum dono, mas todas essas são suposições e na verdade nunca vamos saber de onde ela realmente veio. Ela parecia ser jovem, não tanto como a Lucy era quando chegou, mas por volta de 2 anos no máximo. 

Lucy gravitou pra ela imediatamente. Kika parecia ser mais madura, mais confiante e mesmo assim bem paciente. Muito respeitosa, bem disposta mas ao mesmo tempo tranquila em seus momentos de relaxamento, porém, já no primeiro dia notei uma coisa importante: um comportamento de alerta territorial relevante. O meu espaço era uma casa, e ela virou o alarme. Eu nunca tinha visto uma cadela pequena latir tão grosso! Quem estivesse do outro lado do muro iria achar que eu tinha um cachorro enorme e bravo. Naquele momento isso não era um problema tão grande, já que eu apreciava esse alerta, especialmente quando estava sozinha naquela casa grande, apenas com os cães.

Na primeira noite dela com a gente, dormimos todos no mesmo quarto, eu, Zico, Malu, Lucy e Kika, sem qualquer problema. Na manhã seguinte éramos um time, ela já estava no grupo, e a Lucy finalmente tinha encontrado um cachorro que tolerava ela. O senso de pertencer é tão forte nos cães como é nos humanos. Não queremos andar sozinhos e juntos somos mais fortes, é assim que a natureza funciona. Nessa primeira noite eu ainda não tinha trazido as caixas de transporte pra o espaço então meu risco era muito maior, já que todos estavam soltos sempre, porém, eu estava presente, e saiu tudo bem.

Ao longo dos meses seguintes, o espaço foi ganhando clientes, novos cães que vinham todos os dias, e a Kika estava sempre lá. Ela não vinha para o meu apartamento, morava lá mesmo, então pra ela, era crucial ter uma rotina com mais atenção já que o contato diário e frequente com cães estranhos exigia muito dela. Ela começou a pegar alguns hábitos, alguns que eram herança dos meus outros cães. Nessa época, o Zico já tinha sido diagnosticado com seu problema hormonal e ele sentia muita fome por conta dos remédios então ele era o alarme para o horário da alimentação. Ele literalmente ia correndo para o espaço da comida, todos os dias, no mesmo horário, e a Kika aprendeu a fazer o mesmo. 

Os cães aprendem por observação, e quando um faz, sem intervenção, logo todos fazem também. Efeito cascata, seja num comportamento bom ou ruim. Isso virou uma mini competição, não no sentido de brigas, mas no sentido de agitação. O Zico agitado não era um problema, até porque a disposição dele era muito baixa, mas a Kika não. A Lucy, que via a Kika como uma mães de leite, começou a fazer a mesma coisa. São detalhes que parecem pequenos, mas todos os dias, passam a incomodar de verdade. 

Dentro desse cenário a Kika tinha uma rotina mais definida, e eu fazia questão de deixar ela ter uma folga dos cães cedo, todos os dias. Parece que não mas o estresse de ter que lidar com cães estranhos tem um peso no comportamento do cão. Kika sempre foi boa praça com outros cães, mas nunca tolerou instabilidades extremas. Eu tive uma cliente que tinha uma SRD de 7 anos bem grande. Essa cadela nunca tinha saído de casa, e a única atividade que a família fazia com ela era jogar bolinha no corredor externo da casa aonde moravam. 

Quando essa cachorra chegou no meu espaço, ela parecia um outro animal estranho. Ela não tinha qualquer familiaridade com outros cães e só ficava procurando essa bolinha, o dia todo! A Kika odiou essa cachorra logo de cara, e um dia partiu pra cima dela de verdade. Conseguimos intervir e daí pra frente elas ficavam sempre separadas lá dentro. Eu fazia questão de caminhar com elas duas juntas, todos os dias, e elas iam muito bem, porém, da porta pra dentro era guerra. Eu sempre digo que brigas entre fêmeas são as piores, e pra quem conhecia a Kika, era nítido como ela mudava quando via essa cachorra. Era como se os olhos dela enchessem de sangue e ela queria ver a outra morrer, de verdade. 

Essa foi a única cachorra, entre dezenas, que a Kika detestava, e acho que a única que desencadeou essa reação dela desde que ela vive comigo. A lição aqui era simples: a instabilidade de um cachorro pode custar a vida dele na natureza. Cães normais não tem pena, não tem compaixão, eles zelam por auto preservação, e só Deus sabe como essa cachorra era um problema. 

Em um final de ano, o espaço estava bem cheio de novos cães e eu resolvi trazer a Kika pra meu apartamento, à noite, para dormir melhor. Eu queria dar uma folga pra ela e ver como ela iria se comportar aqui, já que durante todo esse tempo ela só tinha vivido na casa. Pra minha grande surpresa eu vi essa cachorra desligar de verdade, talvez pela primeira vez na vida. Ela dormiu como se não houvesse o amanhã, e foi uma revelação pra mim esse momento. Lembrem que essa era uma época aonde eu ainda acreditava que o convívio em matilha era mais saudável, mas ali, naquela noite, eu vi o quanto os cães podem ser um produto do seu ambiente, e como o espaço individual faz toda a diferença.

Sim, aqui em casa eu tinha os meus outros cães mas a dinâmica era outra. Silêncio, sem entradas e saídas de novos cães, sem movimentos de pessoas, apenas nós aqui, dentro do nosso espaço de sossego. Depois de dois anos, quando resolvi fechar o negócio, tinha minhas dúvidas se conseguiria fazer dar certo com a Kika aqui em casa permanentemente, mas lembrei daquela noite, e assumi o compromisso de ter ela comigo aqui junto com a turma. Eu lembro que assim que viemos para casa, ela literalmente desmaiou de cansaço. Ela dormiu por três dias seguidos, acordando apenas para comer, beber água e usar o banheiro. Era como se toda a carga de estresse finalmente tivesse acabado, e assim ela começou a fase definitiva aqui em casa. 

O tempo que ela viveu com a gente no espaço foi importante para ela, mas foi também muito relevante pra mim no sentido de aprendizado. Eu entendi como existe uma diferença grande entre um convívio de cães da mesma família e um convívio com cães estranhos. Aqui em casa ela se adaptou muito rápido. Eu fazia um roteiro com ela e a Lucy e outro com o Zico e a Malu. Muitas vezes saímos todos juntos mas fomos dividindo os times conforme as características do grupo. Foi nessa fase que a relação da Lucy com a Kika ficou ainda mais forte.

As duas tem o mesmo tipo físico e tamanho, e as duas tem muita disposição então exploramos caminhadas bem longas, levei as duas para aprender a nadar, e fomos construindo uma dinâmica bem bacana de atividades físicas, equilibrando tudo isso com momentos de relaxamento. Kika se mostrou uma cachorra que apreciava muito o tempo dela de sossego, mesmo quando ainda era jovem. Ela foi ficando bem familiar com o bairro e todos os lugares que íamos juntas por aqui.

Uma vez aqui nessa rotina, tempos depois, eu comecei o treinamento dela, junto com a Lucy, na coleira eletrônica, e vi essa cachorra ficar absolutamente sensacional. Nessa fase Zico e Malu já estavam bem mais devagar no ritmo de atividades então eu dediquei bastante tempo a essa dupla. Nós três íamos para todos os lugares juntas e assim dominamos a fase de exposição social, como nunca tínhamos feito antes. Eu já atendia clientes em casa nessa época e foi muito importante ter vivido tudo isso com a Kika pra poder ajudar outra pessoas que tinham problemas com cães que frequentavam esses espaços. 

Maluzinha foi embora em 2018, e um ano depois o Zico, me deixando apenas com Lucy e Kika. Tivemos seis meses, apenas nós três, e foi sensacional. Nessa época eu prometi pra mim mesma que não teria mais cães, pelo menos até o fim da vida das meninas. Eu queria poder curtir mais elas duas já que a fase de problemas de saúde do Zico comprometeu muito meu tempo com elas então agora era a hora de compensar esse período. Minha rotina era perfeita, as duas estavam maravilhosas e finalmente eu tinha uma vida fácil com minhas cachorras. Era meu sonho realizado! Zico e Malu foram incríveis, e agora eu tinha minha segunda dupla exatamente aonde eu queria, sem problemas e sem complicações.

Como tudo na vida flui e nada fica sempre no mesmo lugar, um belo dia, eu estou no consultório veterinário batendo papo com a minha amiga, veterinária das meninas, e ela me fala sobre uma feirinha de adoção. Há muitos anos o pet shop aqui do bairro não fazia mais as feiras, e assim eu não via mais esses cães para adoção, o que era bom pra mim porque sempre tive um coração mole, então o que os olhos não veem o coração não sente, certo? Ela me falou sobre essa moça da periferia que resgatava cães por lá e precisava de ajuda. Seria no Sábado seguinte e ela me mostrou algumas fotos dos cães que estariam lá. 

Eu tinha na minha mente a promessa de não pegar mais nenhum cachorro, e sabia que naquele dia não poderia ir na feira já que eu tinha uma consulta agendada com uma cliente do outro lado da cidade, assim, eu estava segura. A dona do Pet Shop tinha me pedido pra ir para ver se eu poderia avaliar uma Maltês que tinha sido resgatada mas era muito arisca e já tinha mordido algumas pessoas, então não poderia ser adotada por qualquer pessoa. Eu disse que tentaria passar por lá, mas não poderia garantir o horário, então assim ela me mostrou umas fotos de outros cães que estariam lá, e alguma coisa dentro de mim me disse que esse seria um novo capítulo da minha história. Assim seria a história da Emma, mas tudo isso eu vou contar no próximo capítulo.

Até breve.