Confissões de uma treinadora de cães: Capítulo 15.

Surpresas fazem parte da vida, talvez sejam elas que nos façam repensar sobre muitas coisas, na vida pessoal e na profissão. Quem mergulha no trabalho com cães tem que estar preparado para isso, já que nessa arena, surpresas não faltam. 

Para começar, é preciso lembrar que nesse trabalho, estamos sempre contando com variáveis e poucas constantes. Somos prestadores de serviços e não temos renda fixa, logo, quem se dispões a trabalhar assim tem que saber viver na montanha russa de altos e baixos, especialmente aqui no Brasil, aonde não temos uma cultura estabelecida sobre educação de cães. 

Todo treinador de cães precisa saber se planejar, e criar alternativas para sobreviver, contando que existem as temporadas boas e ruins nessa profissão. Mais do que isso, parte desse planejamento deve envolver outras alternativas de fonte de renda já que todos temos nossas limitações, e precisamos definir como vamos querer trabalhar. Aqueles que optam apenas por fazer atendimentos presenciais, provavelmente vão precisar atender uma quantidade de cães significativa por dia para poder se manter. Essa escolha pode comprometer a qualidade do seu trabalho e a sua disposição para pensar nos planos B, C e D.

Os planos B, C e D devem existir, em qualquer profissão, mas especialmente na nossa. Tudo pode mudar a qualquer momento e facilmente podemos ser pegos com as calças na mão. O ano de 2020 mostrou isso com muita clareza, e os profissionais que estavam confortáveis com o formato de creche e hospedagem ficaram, da noite para o dia, sem clientes. Essa foi uma das muitas surpresas que podem acontecer, e afetam a nossa vida pessoal também, afinal estamos falando da nossa sobrevivência. 

Aqui em São Paulo eu vi muitos profissionais passarem por situações muitos difíceis nesse período. Muitos perderam mais de 80% das suas rendas e tiveram que, naquele momento, tentar se reinventar. Muitos não conseguiram. Nessa época eu aproveitei para tirar da gaveta alguns projetos e foi quando comecei a fazer turmas de cursos online e finalmente voltei a fazer os treinamentos de cães no formato de intensivo, aqui em casa. Eu sempre gostei muito desse modelo de negócio e passei a colocar esse lado como prioridade. 

Vimos muita demanda de serviços mudar, e muitos profissionais ficarem desmotivados. Eu acredito que essas surpresas servem para nos ensinar. Nunca podemos contar com apenas uma vertente do negócio, e precisamos criar um modelo que acomode diferentes alternativas, passíveis de sobrevivência em situações aonde o mercado sempre pode se ajustar. 

Toda surpresa no lado profissional afeta nosso lado pessoal, especialmente para os treinadores de cães. Vivemos isso todos os dias e os cachorros são uma parte crucial de nossas vidas. Mas nem todo trabalho com cachorros é o treinamento na prática, eu acho que temos mais do que isso para explorar. Eu mencionei sobre a questão da cultura brasileira sobre educação de cães, e como ainda estamos potencialmente atrasados em relação à outros países, então, podemos ver esse detalhe como uma oportunidade de expansão. 

Parte do planejamento dessa carreira envolve investimento de tempo e energia em outras vertentes do negócio, que não vão te trazer resultados financeiros num primeiro momento, mas precisam existir agora, para no futuro, poderem ser uma potencial nova fonte de recursos. Do que eu estou falando? Estou falando de alternativas no universo online, como um conteúdo produtivo em um website, um canal do Youtube e etc. Essas alternativas podem ser monetizadas à longo prazo e podem trazer boas oportunidades de expansão.

O paralelo dessa escolha, com a cultura sobre educação de cães no Brasil é o alcance de informação. Para ministrar um curso ou uma mentoria, seja online ou presencial, é preciso poder chegar nas pessoas com essa informação, e isso não acontece da noite para o dia. Pode demorar um tempo considerável para se ganhar credibilidade e confiança da sua audiência, para que seja possível fechar uma turma de curso rentável, seja no formato que for.  É aqui que entra seu planejamento de tempo entre suas atividades para equilibrar o seu trabalho na prática com os cães e o desenvolvimento da sua reputação virtual, com boas informações. 

Eu posso dizer que mesmo com todo esse planejamento, muitas vezes é preciso considerar ter um segundo trabalho, alguma outra fonte de renda que possa te manter estável até esse empreendimento decolar. Pra isso você precisa de tempo e disposição para botar a sua criatividade para funcionar. Se você ocupar o seu dia com 10 aulas presenciais, eu garanto que você nunca vai parar para fazer mais nada além disso, e um dia seu corpo não vai mais te acompanhar. Eu sempre pensei nisso, afinal o relógio não anda para trás, e se não considerarmos possibilidades, cedo ou tarde vamos tombar. 

Um outro grande ponto sobre surpresas e sobrevivência, é o seu elemento ou fonte de suporte psicológico e emocional. Só Deus sabe que nessa profissão precisamos muito disso e sem esse apoio, ficamos malucos muitos rápido. Isso não é tão fácil de se conquistar, considerando que um treinador de cães acaba vivendo uma vida um pouco alienada da sociedade normal. Acabamos gravitando para outros profissionais e buscamos neles esse suporte, às vezes com sucesso, às vezes não. 

Nem sempre um grupo de profissionais te segura no lugar. Alguns te puxam para baixo, outros te incentivam, mas tudo é uma questão de aprendizado e experiências. Podemos, e devemos, criar nosso próprio mecanismo de auto defesa e saber identificar o que é bom para nós e o que não é. Existem milhares de grupos de treinadores nesse mundo, mas nem sempre é lá que você vai encontrar o seu conforto. Existem muito mais treinadores frustrados do que felizes de verdade, infelizmente. Isso acontece porque a nossa expectativa é muito diferente da nossa realidade no trabalho, e isso vai destruindo o indivíduo aos poucos, quando ele não sabe se auto preservar.

Eu falei sobre isso no capítulo anterior, e posso dizer que não é uma lição fácil de aprender. É preciso muito exercício de equilíbrio mental e emocional para manter a sanidade no lugar, mas é possível. É nessa investida emocional que outras surpresas podem aparecer, boas e ruins. Eu já vi muitas parcerias se formarem e se desfazerem na mesma velocidade. Tudo parece muito bom no começo, mas a convivência e as experiências juntos, podem te mostrar diferenças incompatíveis de lidar. Nem sempre esse fim é amistoso, e muitas decepções ocupam esse lugar. 

Por outro lado, existem parcerias e amizades incríveis que podem se formar, muitas vezes com pessoas que nem estão tão perto de você. É curioso ver como nesse momento, entendemos que o ser humano não é mesmo uma ilha, e por melhor que possamos ser, sozinhos não chegamos muito longe. Ter alguém para dividir seus momentos, suas risadas e seus casos, é importante, e nos faz mais leves. É preciso ser honesto e poder enxergar diferenças e similaridades, colocar algumas coisas de lado e apreciar outras. 

Eu já tive as duas experiências nesse sentido, boas e ruins, com outros profissionais. Já fui mais sensível as decepções mas também já fui mais aberta as novas oportunidades. Hoje acho que estou na busca do equilíbrio. Não é uma questão de passar o cadeado na porta, mas sim de botar um olho mágico talvez para entender melhor sobre quem está entrado. 

Um conselho que eu gosto de dar para toda a turma nova de profissionais é: mantenham amizades fora desse universo também. Por mais que nossa rotina seja limitada, é importante saber apreciar pessoas que não vivem nesse mundo dos cães, conversar sobre outros assuntos e poder ver o mundo com outros olhos. Como se diz na Bahia: “tudo demais é sobra” então precisamos saber equilibrar a nossa vida pessoal com a profissional, senão um dia, tudo vira uma coisa só. 

Esses dias eu estava conversando com um amigo sobre o cenário atual desse mercado de treinamento de cães e como seria legal vermos muita coisa mudar. Não sei se vamos estar vivos para ver essa mudança, ou mesmo se ela um dia vai chegar, mas se fizermos a nossa parte, podemos ter uma esperança, ou mesmo a nossa certeza de que fizemos o nosso melhor. 

Surpresas, minha gente, mesmo que sejam ruins naquele momento, podem ser o divisor de águas na nossa formação e evolução como profissionais e pessoas. Um dia eu tive certeza de muitas coisas que nem existem mais. Um dia eu fui embora desse país, um dia eu voltei, um dia eu casei, um dia eu me separei. Um dia eu abri um negócio, um dia eu fechei, um dia meu pai estava aqui, no outro dia ele faleceu. Um dia eu tive um cachorro, um dia ele morreu. A vida é assim, tudo muda, e tudo sempre vai mudar. É a nossa habilidade de sobreviver, e tirar dessas surpresas grandes lições, que nos faz melhorar. 

No próximo capítulo eu vou falar sobre... surpresa!

Até breve.