Confissões de uma treinadora de cães: Capítulo 16.

O ser humano é facilmente impressionável. Palavras bonitas, e uma boa apresentação, com o apelo correto, podem mover montanhas de opiniões, e isso sempre vai ser a nossa grande perdição como espécie. Porque eu já estou começando nesse tom? Porque isso é grave, e tem implicações em tudo que fazemos, especialmente no que diz respeito ao treinamento de cães. 

Eu sempre fui uma pessoa curiosa e sempre busquei mais do que uma simples explicação. Eu nunca acreditei que um problema não tinha uma solução e, enquanto a mesma não me fosse apresentada, eu jamais encontrei satisfação. Eu acho que esse grau de sensatez ainda é pouco usado na nossa profissão, e muitas vezes ficamos perdidos no meio de tanta explicação. 

O mercado de treinamento de cães é mercado de soluções, como todo mercado de prestação de serviços, logo, um bom profissional sempre vai ser avaliado pela sua habilidade de entregar esse elemento como produto final. Por alguma razão, dentro do universo de adestramento e comportamento canino, passamos a viver dentro da galáxia dos porquês. 

Esse movimento, de tentar justificar todos os problemas de comportamento dos cães, surgiu de poucas décadas para cá, com uma intenção mascarada. É como se fosse um labirinto de explicações, que nunca tem fim, e nunca chega em uma solução. Por alguma razão, deixamos a objetividade de lado e passamos a viver na era abstrata de infinitas possibilidades. São discursos densos, cheios de nomes bonitos e explicações. Eles fazem com que as pessoas embarquem numa jornada longa de possibilidades carregadas pela emoção. 

Hoje, o cachorro que late para os barulhos de campainha e interfone, são analisados como livros, e criam-se verdadeiras enciclopédias para tentar justificar o motivo pelo qual eles se comportam dessa maneira. As explicações vão desde uma insegurança leve, a inabilidade de lidar com esses sons, a genética e predisposição da raça, ao ambiente inadequado, a dores crônicas, ciúmes, desejos, falta de exercício físico e interação. O que ninguém quer falar é sobre a solução. Porque? Porque a solução envolve correção e controle do cão. 

Ficou tão repetitivo o termo “você precisa proporcionar ao seu cão aquilo que ele precisa” que esquecemos de detalhar exatamente como esse processo se manifesta, na prática. O que é exatamente “o que ele precisa”, e como isso afeta o comportamento negativo do cão? É mais uma armadilha. Vou explicar melhor como essas armadilhas funcionam. 

  • Primeiro, analise o problema: o cão late toda a vez que interfone (ou campainha) toca. 

  • Segundo, qual é o seu objetivo ou solução: o que eu quero que meu cachorro faça nessa hora, ou seja, qual o comportamento ideal nesse momento.

  • Terceiro, entenda a diferença entre saber o porque, e aplicação de solução: pode ser que o cachorro tenha essa resposta de comportamento por uma série de razões. Ele pode ser geneticamente predisposto à vocalizar mais, ele pode ser mais sensível à sons, ele pode ser inseguro, ele pode ter pouca habilidade social, ele pode ser ansioso, ele pode ser impulsivo, ele pode ser reativo, ele pode ser possessivo com você, ele pode ser territorial e etc. O ponto aqui é, existe alguma dessas justificativas que me façam aceitar esse comportamento sem intervenção ou correção? Você está disposto a conviver com isso, por conta de uma justificativa ou você quer uma real solução? 

  • Quarto, faça acontecer: recrie o cenário e aplique uma correção. Seja consistente, e veja a resposta. Simples. 

Essa análise de padaria deveria ser óbvia mas infelizmente não é, e a culpa é nossa como classe. Acreditamos que falar sobre os porquês é mais interessante do que falar sobre as soluções, e assim vamos criando uma sociedade cada vez mais inapta a controlar os cães. Não é toa que os cães hoje são vistos como peças de cristal líquido, e as pessoas passaram a acreditar que qualquer tipo de correção vai criar um trauma irreparável nesse animal, destruindo a sua relação com esse cão. 

O que eu acho mais engraçado, e curioso, é que muitos dos profissionais que vendem esse tipo de argumentação estão constantemente reclamando da falta de motivação dos donos em relação ao treinamento e rotina de seus cães. Como que poderia ser diferente? Aonde estamos, de fato, facilitando para esses novos donos de cães? 

Esses dias eu li uma frase que disse: “se você quer incentivar alguém a fazer alguma coisa nova, faça dessa atividade uma coisa simples de aprender.” Simplificar é usar objetividade na instrução. Já é difícil motivar e impulsionar a cultura do treinamento de cães, mas quando floreamos demais, só estamos complicando e fazendo com que esse processo se torne muito mais difícil do que deveria ser. De novo, a culpa aqui é nossa. 

Vamos pegar esse exemplo acima do cão que late toda vez que a campainha toca, e vamos tentar aplicar essa vertente das justificativas e explicações. Ao invés de propor uma simples correção, podemos mergulhar nesse oceano de possibilidades e ver até aonde podemos chegar. Eu poderia analisar toda a rotina dessa família com esse cachorro e dizer que ele não caminha, ou faz atividades físicas suficientes, eu poderia dizer que ele precisa de mais enriquecimento ambiental, eu poderia dizer que ele precisa de mais interação com os donos, eu poderia dizer que ele precisa de mais socialização, e etc. 

Toda essa volta ao mundo de explicações só serve para uma coisa: evitar falar em correções. A ideia aqui é tentar adicionar outras coisas na vida desse cachorro, com a esperança de que assim, esse comportamento milagrosamente desapareça, sem nunca ser preciso usar qualquer tipo de intervenção. Soa bem mais atraente, especialmente para as pessoas que já tem uma opinião formada sobre correções. Isso nada mais é do que vender uma ilusão.

Porque essa prática ficou tão comum no mundo dos treinadores de cães? Porque isso é dizer o que a pessoa quer ouvir. É muito mais fácil você vender isso como alternativa do que ter que descontruir essa ilusão. Você dança conforme a música, ganha muito mais dinheiro desse cliente, e deixa o barco correr sem direção. Uma vez que o dono implementa todas essas mudanças e ainda assim não vê nenhuma evolução, entra a outra justificativa que é: “isso é da raça, é da genética dele, é um comportamento criado pelo ambiente e suas variáveis, ou essa é uma característica dele como individuo e ele não vai mudar.” Esse é o momento aonde o profissional, usando toda essa terminologia diferenciada, convence o dono a aceitar o comportamento do cão como um fator da natureza, imutável, e não passível de intervenção. 

No resumo, ou o dono aceita isso como realidade, ou se livra do cão. O profissional sai como um grande professor, e o cachorro muitas vezes, perde a oportunidade de ficar nessa família. Não estou exagerando quando digo que cães assim são descartados. Isso é muito mais comum do que vocês imaginam e só acontece porque nós não somos objetivos na nossa argumentação. 

É claro que não só nesse, como em todos os outros casos de cães com problemas de comportamento canino, vamos trabalhar numa fase de construção. Nenhum treinamento existe apenas com correções, mas existe uma diferença enorme entre construir e nunca corrigir, até porque, na própria fase de construção já existe um certo de grau de correção, já que sem isso, não existe clareza na comunicação. 

Quando aprendemos qualquer coisa nova, nos primeiros estágios de instrução já somos corrigidos e ajustados. Isso é  direção. Mas criamos um tabu tão grande em relação a tudo isso que acabamos deixando de falar sobre o assunto, e ficamos fazendo rodeios para evitar esse momento de desconforto. 

Eu comentei em capítulos anteriores sobre os espaços vazios nessa profissão, que eu chamo de lacunas não ocupadas. Essa é uma delas. Como em todo mercado, no treinamento de cães existem também as modas do momento. Alguém fala uma coisa e de repente todos começam a repetir a mesma argumentação, muitas vezes sem pensar nas consequências. Existem pitadas de neuro-linguística e marketing em todas essas modinhas e muitos profissionais seguem essa linha acreditando estarem embarcando no trem da popularidade. É quando a necessidade de validação se sobrepõe a sua real ideologia no trabalho. É quando você deixa de ser você e passa a ser mais um na fila do apelo popular.

Todos nós humanos somos passíveis a influencias externas, mas sem o devido cuidado, podemos nos perder muito rápido. Sem pensar, e sem querer, podemos estar jogando contra nós mesmos. Quanto mais negarmos a realidade mais difícil vai ser o caminho dos nossos clientes com seus cães. Não é difícil ver tudo isso, mas para muitos é difícil agir de acordo. 

O mais contraditório de tudo isso é que todo treinador de cães fala sobre liderança, postura, regras, limites, rotina e consistência. Mas quando avaliamos o comportamento da classe, de forma geral, vemos muito mais seguidores do que líderes, muito mais submissos do que dominantes, muito mais indivíduos reativos do que seguros de si, e muito mais necessidade de validação do que habilidade de intervenção. Que inversão de valores, hein? 

No próximo capítulo eu vou explorar mais sobre as teorias bonitas versus a realidade, e porque eu insisto em dizer que o grande obstáculo dessa nossa categoria ainda está dentro da nossa própria casa. 

Até breve.