Confissões de uma treinadora de cães: Capítulo 14.

Sucesso é um elemento mesurável por percepção pessoal e individual, por isso, sempre vão existir discussões à respeito disso, especialmente dentro do universo de treinamento de cães. Cada um de nós tem uma expectativa, ou uma visão do quer do seu cão, e para quem está de fora, muitas vezes é difícil aceitar isso como certo.

Eu aprendi, ao longos dos anos, a deixar de lado a minha expectativa e trabalhar dentro da realidade de cada família, usando o bom senso. Eu entendi que a minha expectativa é muito mais alta do que a da maioria da população, e muitas pessoas estão dispostas a se satisfazer com muito menos, para poupar esforços e ter mais tempo livre, sem tanta energia dedicada ao aprendizado do cão. Acho que todos nós como profissionais precisamos aprender essa lição. 

Entender a realidade do outro não significa que seu modelo de treinamento vai ficar pior ou menos eficaz. Esse grau de compreensão nos faz focar nos pontos que são mais significativos para a modificação comportamental dos cães, mesmo que seja em coisas bem simples como ajustar a forma de caminhar com o cão, ou uma boa adaptação na caixa de transporte. Para muitos clientes, é apenas isso que eles querem. 

Eu já passei por isso algumas vezes e vou compartilhar com vocês algumas dessas histórias interessantes. Uma vez eu atendi um senhor que tinha dois cães. Ele tinha um Labrador de 8 anos, e tinha recentemente adotado um SRD pequeno, bastante agitado. Esse pequeno já tinha sido adotado e devolvido duas vezes, e essa era a terceira casa dele em menos de 1 ano. Quando cheguei lá, conheci os dois cães. Eles moravam num apartamento bem grande, bem próxima à uma avenida bem conhecida, com muita circulação de pessoas e cães. O Labrador era um cão muito bem educado. Tranquilo, seguro e respeitador, e bastante tolerante com esse pequeno que tinha acabado de chegar. O pequeno parecia um cometa de tão agitado e rápido nos movimentos, e quase não sabia ficar parado num lugar só. 

Lembro que o senhor me disse o seguinte: “Raquel, aqui em casa ele não me incomoda de jeito nenhum. Eu trabalho de casa e ele fica tranquilo aqui comigo o tempo todo, mas eu não consigo sair com ele para caminhar por conta de toda essa agitação. Ele puxa demais e avança nos outros cães. Eu só preciso poder sair com esse cachorro com tranquilidade, nada mais do que isso.”

Eu sei que esse é um discurso comum e muitos de vocês podem falar a mesma coisa dos seus cães. Nós treinadores sabemos que tem muito mais trabalho a ser feito do que apenas a caminhada, mas, dito isso, vamos primeiro lidar com esse problema e depois avaliar o restante. Peguei a minha Prong Collar, mostrei para o dono, e fizemos a introdução na sala do apartamento. Esse cachorro resistiu durante uns 2 minutos depois entendeu, e começou a andar comigo. Depois disso descemos, e caminhamos a avenida quase toda, sem nenhuma reação desse cão. 

O senhor ficou maravilhado e disse que era isso que ele queria. Depois disso, dediquei mais tempo criando o exercício do place com ele e o outro cachorro, falei sobre a caixa de transporte e passei todas as orientações. Eu sai de lá tendo a certeza de que ele não me chamaria mais, porque já tinha conquistado o que precisava. Dito e feito. Nunca mais ouvi falar dele, e isso é normal. Muitos dos meus atendimentos são assim, e mesmo sabendo que todos esses cães poderiam se beneficiar com mais do que uma simples sessão, eu aprendi a aceitar que cada pessoa escolhe até aonde quer chegar com seu cão. Nesse caso, pra ele, pode ter sido um sucesso, e pra mim não, mas o cachorro não é meu, então o que vale é o resultado que o dono quer ver, não o que eu considero ser o ideal. 

Esse é um conflito interno que muitos treinadores passam. Eu mesma já me peguei, por várias vezes, me questionando sobre isso. Mas sempre tento me relembrar que cada pessoa é livre para fazer a sua escolha, e eu só posso ir até aonde sou chamada. 

No universo interno de profissionais é normal vermos e criticarmos o trabalho dos colegas. Muitas vezes, sem o contexto do caso, imaginamos que o trabalho poderia ser melhor, e que na nossa mão seria diferente. Sim, cada profissional tem suas habilidades mas cada caso envolve um cenário e expectativas diferentes. É impossível saber tudo que acontece nas entre linhas e podemos apenas criar hipóteses com base no que vemos de fora. 

Eu já tive a oportunidade também, de atender pessoas muito dedicadas, com uma expectativa bem alta, e vi esses cães se tornarem incríveis. A comunidade de pessoas que tem vontade de fazer tudo certo é menor, mas ela existe. Eu já me surpreendi muito com pessoas que não me passaram certeza na primeira consulta, mas depois decolaram nos treinos. Muitas dessas pessoas eu atendi apenas virtualmente, e isso é sensacional.  

Eu lembro de um caso mais antigo, de um senhor que tinha dois cães. Ele já tinha uns 60 anos e estava com dois tumores na cabeça. O médico já tinha alertado que ele não poderia ser puxado nem forçado em nenhuma direção, pois esse movimento poderia romper um dos coágulos na cabeça e ele poderia morrer em poucos minutos. Ele tinha cães reativos. Eles iam bem até se verem de frente com certas situações, então era preciso acabar com isso imediatamente para salvar a vida desse homem. Trabalhamos com a e-collar e esse senhor foi uma das pessoas mais maravilhosas que eu conheci. Quanta dedicação! Esses cães ficaram incríveis e hoje ele continua vivo, e tem um terceiro cão. Nem todo mundo faria o esforço que ele fez, mas ver isso de perto, é indescritível e só me traz mais motivação. 

Outro caso muito bacana também, que eu atendi, foi de um SRD jovem, que vivia com duas senhoras, de mais de 60 anos. Esse cachorro frequentava uma creche para cachorros desde os 4 meses de vida, mas cresceu e se tornou um cachorro muito reativo com estranhos. Isso é bem normal em cães de creche e eu poderia fazer uma lista considerável de cães que já atendi com o mesmo histórico. Um certo dia, uma das senhoras estava com ele no elevador, e quando a porta abriu uma pessoa tentou entrar (outro morador do prédio). No momento de explosão, ele mordeu a dona na mão, quando ela tentou segurar ele pela guia, e foi sangue para todos os lados. 

Começamos com a caixa de transporte e a e-collar. Eu lembro da primeira vez que fui lá. Esse cachorro queria me matar! Mas fomos trabalhando com ele, e em pouco tempo exploramos o universo social com muito mais segurança. Eu lembro que uma vez fomos caminhar num parque, perto da casa dela, e na saída ela me disse: “meu sonho era poder sentar e tomar uma água de coco com ele aqui sem ele atacar ninguém.” Como se diz na Bahia: “só se for agora!”. Peguei ele, entramos na lanchonete, coloquei ele deitado e curtimos a nossa água de coco, sem qualquer problema. 

Esse caso foi muito especial porque essas senhoras foram incríveis. Elas tiraram ele da creche, mudaram de rotina e esse cachorro passou a ter uma vida social muito mais bacana. Agora ele caminhava em lugares diferente e fazia mais parte da vida de família, e a casa ganhou um gato, que virou um bom companheiro desse cachorro, por incrível que pareça. O sucesso pra elas não era ter um cachorro bem afiado em diferentes comandos, mas sim, um cachorro que pudesse viver bem, dentro e fora de casa, sem esses episódios de explosão. Claro que alguns comandos foram importantes pra ele, mas o ponto aqui é focar no que é importante, e vai fazer a diferença para esse cachorro – inclusão com segurança. Por isso eu gosto tanto da e-collar e vejo como esse equipamento faz diferença na comunicação com o cão, especialmente quando falamos de pessoas mais velhas, e pessoas com menos habilidade física de intervenção. Ver esses momentos de superação e as pessoas ganhando essa confiança em lidar com seus cães é maravilhoso, e isso já é um grande sucesso aos meus olhos. 

Eu tive, e ainda tenho, clientes que eu chamo de pérolas. Pessoas incríveis que aparecem do nada e me fazem felizes sempre que vejo essa dedicação. É importante lembrar que essas pessoas não ficam na sua vida muito tempo, porque a ideia é que elas não precisem mais de você. Isso é bom, porque é isso que mostra que seu trabalho teve resultados. Algumas dessas pessoas viram amigos, ou sempre estão no seu radar, mesmo que seja para de vez em quando compartilhar a felicidade que elas tem com seus cães. 

Eu acho que muitos novos profissionais já estão mudando e vendo como esse formato de trabalho pode ser muito mais recompensador. Eu tenho que admitir que hoje, vejo novas sementes brotarem e vejo que quando eu parar, vão existir pessoas prontas para continuar essa saga. Sim, o mercado em geral é complicado, confuso, cheio de conflitos e discussões. Tem muita gente ruim por ai, mas pra continuar, precisamos ver as flores que brotam nesse jardim. Se olharmos apenas para os espinhos, as flores tendem a morrer, e sem elas, não teremos mais jardins. 

Hoje eu estou num dia mais salpicado por esperanças então escolhi escrever sobre o lado bacana e recompensador dessa profissão. Acreditem, nem sempre é assim! Eu brigo bastante, comigo mesma, para não me deixar sugar pelo mar de insatisfações. As brigas e conflitos dentro da classe de profissionais podem nos levar ao abismo, então todo cuidado é pouco para não se perder. Eu me cobro sobre esse olhar de esperança e revisito sempre os momentos de muita satisfação. Talvez porque, hoje, eu tenha uma expectativa menor em relação aos meus clientes, eu tendo a me surpreender mais, e isso é ótimo. Nós também precisamos da nossa dose diária de motivação, e nada como olhar para o lado, ou para trás, e ver o que já conseguimos conquistar. 

No próximo capítulo eu vou explorar surpresas dessa profissão. Muitas dessas surpresas envolvem questões pessoais, outras profissionais, muitas boas, muitas ruins e como tudo isso afeta o nosso psicológico na vida e no trabalho com os cães.  

Até breve.