A mudança de perspectiva humana antes da mudança de comportamento do cão.

Nessas últimas semanas eu tenho abordado bastante o tema de percepção humana no treinamento de cães, especialmente nos últimos vídeos, por isso hoje, nesse texto, vamos mais à fundo nesse tema para entender porque essa mudança de perspectiva é tão necessária para que o sucesso do cão no seu treinamento seja para a vida.

Qual é a atual percepção humana sobre os cães domésticos, e porque isso é um problema? 

Hoje os cães são vistos como animais frágeis, sem propósito, sensíveis à tudo e sem qualquer habilidade de lidar com desafios maiores dentro da vida doméstica urbana. 

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Como assim? De onde vem essa minha conclusão? 

Vou listar aqui opiniões genéricas (e muito populares) que vão demostrar melhor o meu ponto:

  • Cachorro é filho de quatro patas

  • Cachorro não pode ficar preso (restrição de espaço)

  • Cachorro não pode ser contrariado (correção)

  • Cachorro tem que “brincar” com os amigos

  • Cachorro tem que ser livre no passeio para explorar

  • Cachorro precisa de brinquedos para se divertir

  • Cachorro não pode ser privado de nenhum espaço íntimo dos humanos

  • Cachorro alegre é cachorro que tá sempre ativo

  • Cachorro quieto está doente ou em depressão

  • Cachorro não pode ser punido

  • Cachorro é sempre inocente, os humanos são sempre culpados 

Eu poderia ir mais longe nessa lista mas acho que já ficou claro. É com base em muitas dessas premissas que vemos tanta resistência das pessoas hoje em propriamente educar seus cães.

Diariamente eu recebo mensagens que famílias que relatam casos de cães da mesma casa que brigam, ou começaram agora a brigar. O texto é sempre o mesmo, e começa assim: “eles sempre viveram juntos, se adoravam, brincavam o dia todo e de repente, do nada eles brigaram!”

O mais curioso desses relatos é que a preocupação inicial da família não é em preservar as vida desses cães, mas sim, em poder colocar ambos juntos novamente dentro de uma vida sem restrições. Muitos desses casos envolvem consequências graves, com cães que foram parar na emergência, muito machucados. 

Vejam que a lista anterior mostra que uma das perspectivas mais perigosas que afetam essa decisão é o conceito de socialização e interação entre cães como se eles fossem crianças pequenas. Quando vemos cães como crianças pequenas, esquecemos quem eles são de verdade (predadores) e até aonde vai sua habilidade de levar uma disputa até à morte. 

Ainda existe o conceito de que dois, ou mais cães da mesma devem ser amigos e brincar juntos o tempo todo. As pessoas realmente esperam que os múltiplos cães da mesma casa durmam juntos, comam juntos e brinquem juntos o dia todo, sem qualquer intervenção humana. Nada poderia ser mais longe da realidade da espécie do que esse conceito por si só.

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Outro relato comum que recebo é de cães que não respeitam os humanos da casa. Nesse caso o comportamento se manifesta de diversas formas, como descrito na lista abaixo;

  • Pular nas pessoas

  • Mordiscar as pessoas quando quer atenção

  • Puxar na guia

  • Roubar comida da mesa

  • Latir para pessoas que passam na rua

  • Avançar em outros cães

  • Destruir objetos da casa

  • Usar a casa inteira como banheiro

  • Latir e gritar quando fica sozinho

  • Constante agitação em qualquer situação 

Vejam que, se fizermos um paralelo com a lista anterior, essa manifestação de comportamentos negativos nada mais é do que o resultado dessa ideologia posta em prática. Estamos aqui falando do filho de quatro patas, que não pode ter qualquer restrição de espaço, que não pode ser contrariado, que não pode ser contido, que precisa de total liberdade para expressar tudo que quer, em qualquer situação, em qualquer lugar. 

Agora vamos para o ponto crucial: como essa ideologia se torna o maior obstáculo no treinamento dos cães? 

Antes do processo de reconstrução começar, a família precisa entender aonde errou e o que precisa ser feito para consertar esse quadro. Nesse processo de compreensão individual, as pessoas precisam estar de acordo com tudo que contraria o que está na lista inicial, ou seja, exige uma mudança total de percepção sobre o cachorro, não apenas para o período do treinamento, mas para a vida com esse cachorro à longo prazo.

Essa é a grande muralha à ser derrubada. Não é à toa que as perguntas mais frequentes que recebo são:

  • Quanto tempo meu cachorro precisa ficar no place?

  • Quanto tempo meu cachorro precisa ficar na caixa de transporte?

  • Que horas eu posso dar mais liberdade em casa?

  • Quando eu posso dar mais liberdade na caminhada?

  • Quando eu posso deixar ele subir no sofá?

  • Quando eu posso deixar ele subir na cama?

  • Quando eu posso fazer carinho?

  • Que horas eu dou a recompensa?

  • Porque ele não pode brincar com os amigos?

  • Quando eu posso deixar ele solto no parque?

  • Quando eu posso deixar meus cães juntos soltos?

  • Até quando eu preciso usar o colar eletrônico?

  • Até quando  eu preciso usar a prong colar?

Vejam como é um ciclo contraditório na sua essência. Seria quase que lógico imaginar que todas essas perguntam, nos levam à crer que a inclinação do ser humano, nesse momento, é voltar para o que é conhecido, ou seja, os hábitos e práticas que levaram o cão à chegar exatamente aonde ele está hoje. 

Existe um enorme senso de urgência em terminar esse processo e voltar à ter uma vida isenta de qualquer responsabilidade e postura correta com o cão. Muitas vezes essa reação não é consciente, mas apenas automática já que esse conceito está enraizado na mente das pessoas há muito tempo. 

É isso que o conteúdo de massa traz, é isso que a propaganda cria. 

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Quebrar essa barreira é o primeiro passo importante para qualquer pessoa que ver reais resultados com seu cão. É uma tarefa árdua para os profissionais da área, é uma constante batalha que temos vencer todos os dias. Vejam que se essa mudança de perspectiva não acontece, de nada adianta o treinamento. O cachorro pode nascer de novo, fazer tudo certo, mas se ele estiver dentro dessa nova rotina estruturada, existe uma grande chance da família sentir saudades daquela versão terrível do cachorro que um dia chegou para o treinamento. É como se fosse uma força maior do que a pessoa consegue controlar. Ela precisa ter aquele cachorro problemático para se reconhecer. 

Pessoal, esse assunto é muito sério. Vejam que aqui nesse texto eu não mencionei nenhuma técnica de adestramento, nenhum tipo de treino específico, mas apenas uma ideologia. É o poder da mente que pode destruir a vida de muitos cães. Essa necessidade de ver o cachorro de uma maneira fantasiosa que leva nossa mente para um país das maravilhas. Muitas vezes nem os choques de realidade nos trazem de volta. 

A conclusão aqui é simples: se você se viu nesses exemplos, minha sugestão seria estudar mais sobre cães, de verdade. Observe os animais, veja como eles se comportam, sem projeções. Cães são animais muitos mais fortes, resistentes e desafiadores do que nós imaginamos. Eles são capazes de muito mais. Eles não tem pena, não tem dó e não pensam duas vezes antes de agir da forma que eles acreditam ser a mais correta. O mundo deles é muito mais rústico do que vocês imaginam. 

Antes de buscar um profissional para te ajudar, entenda que não existe um ou outro truque para se livrar de um comportamento indesejado, mas sim uma mudança de estilo de vida, que envolve toda essa percepção sobre quem é esse animal e o que ele precisa. A resposta está, muitas vezes, nessas pílulas amargas de realidade que muitos de nós tentamos evitar, mas que são o divisor de águas para a nossa evolução como seres humanos.