O cachorro de hoje é a criança que nunca foi contrariada.

Eu sempre tive um grande fascínio pelos mistérios da mente humana, por isso sempre estudei pessoas em situações diferentes e suas reações. O senso de justiça, causa e consequência muitas vezes me levou a analisar casos de crimes e como esses mistérios foram desvendados. O que tudo isso tem a ver com cachorros? Vamos chegar lá.

Recentemente eu assisti um documentário que faz parte de uma série chamada: Evil lives here. O episódio em questão se chama My Son's Prisoner que em português significa prisioneira do meu filho. Essa série é uma narrativa de casos reais de crimes que aconteceram em lugares diferentes, e mostra sempre o testemunho daqueles que sobreviveram para contar. Parece mórbido mas é extremamente educativo na esfera de esclarecimento de comportamento humano.

Nesse episódio a narrativa é de uma mãe, que conta como seu filho, desde criança, já demonstrava sinais estranhos como falta de empatia, comportamento explosivo quando contrariado e respostas violentas e cruéis. Durante o testemunho a mãe conta que o menino, quando bebê, teve graves problemas de saúde e quase morreu. Como o pai do menino também não esteve presente, a mãe, uma pessoa mais frágil e emotiva, decidiu dedicar sua vida a fazer esse menino ser feliz, a qualquer preço.

Essa decisão custou caro, muito caro! Na visão dessa mãe, fazer o menino feliz significava dar a ele tudo o que ele queria, sem jamais contraria-lo. O episódio mostra uma cena quando o garoto já tinha uns 8 anos de idade, na manhã de Natal. Nessa época a mãe já vivia um relacionamento estável com outro homem, que vivia com a família. O garoto nunca gostou do novo companheiro da mãe e sempre o desafiava. Nessa manhã o padrasto pediu que todos se sentassem a mesa para tomarem café juntos antes de abrirem os presentes. O garoto se negou a comer. O padrasto então definiu que ele só poderia sair da mesa depois que terminasse sua refeição. O garoto passou o dia todo naquela cadeira, sem encostar na comida, apenas para mostrar para o padrasto que ele não iria cumprir com suas regras.

No dia seguinte, depois que o padrasto saiu para o trabalho, a mãe, compadecida com a situação do menino, o chamou para entregar o presente: um video game novo de última geração. O menino abriu o presente, olhou seriamente para a mãe, e jogou o video game violentamente no chão, quebrando-o imediatamente. A mãe, em choque, mas com medo de deixar o menino chateado, foi até a loja, e disse que o video game tinha vindo quebrado e pediu outro. Chegando em casa ela entregou o novo equipamento para o garoto, sem mencionar o acontecido para seu marido, evitando assim um possível conflito.

O menino cresceu, eventualmente engravidou uma garota da escola e os dois ficaram morando com a mãe. Na fase adulta ele ameaçava a mãe constantemente, dizendo que uma dia iria mata-la. Anos depois, já depois que o bebê tinha nascido e crescido um pouco, a violência escalou. A mãe dessa nova criança pediu ajuda à sogra, sempre enfatizando que se nada fosse feito ela não conseguiria mais viver ali. Pouco tempo depois ela foi encontrada morta no banheiro da casa.

Quem tiver interesse em ver o episódio em inglês, segue o link aqui:

Parece um filme de terror, mas é real. Essas situações acontecem todos os dias em diversas relações de famílias, e algumas vezes os resultados são fatais. O paralelo que podemos fazer com uma história trágica como essa, e os problemas que vemos hoje com os cães domésticos, é simples: a falta de correção é um ato de conformidade. Esse é o título de um recente artigo que escrevi para o site do INDog Workshops. Vale muito a pena a leitura.

Claro que os cães não são seres de má índole por natureza, como eu acho que pessoas também não. Mas ambas as espécies tem fases de aprendizado importantes, e nelas devem existir o conceito de limites, regras e restrições. Durante o desenvolvimento, seja de uma criança ou de um cachorro, não basta apenas querermos agradar e dar tudo que eles querem, é preciso ensinar respeito, é preciso mostrar que nem tudo vai acontecer de acordo com sua vontade e que erros graves tem consequências. Durante esse episódio, algumas vezes vemos a mãe refletir sobre momentos aonde ela errou. E foram vários! Ela consegue admitir que estava errada, mas a necessidade de ser amada pelo menino era tão grande que ela fazia tudo para ter qualquer migalha de gratidão, afeto ou carinho desse garoto.

Veja como vemos esse mesmo padrão de comportamento humano na relação com os cães:

  1. Quantas pessoas, como essa mãe, vivem uma vida mais solitária e aprisionada com cães?

  2. Quantas pessoas, como essa mãe, tem um cachorro que passou por provações de saúde quando filhote, e por isso, o cachorro nunca foi devidamente corrigido?

  3. Quantas pessoas, como essa mãe, enxergam a progressão de comportamentos perigosos nos cães, mas continuam agindo da mesma maneira, com medo de perder o afeto e carinho daquele animal?

  4. Quantas pessoas, como essa mãe, já testemunharam seus cães atacando pessoas ou outros cães, e assim mesmo deixaram de corrigi-lo, seja por falta de coragem ou de auto confiança para mudar o tom da relação?

Essa lista poderia ser enorme, mas eu acho que já deu para entender o paralelo que quero mostrar. A raiz dos problemas humanos de hoje é profunda, e está ligada à uma série de fatores que vem tornando humanos cada vez mais frágeis, carentes de relações afetivas reais, e facilmente influenciáveis por agendas que promovem menos disciplina e mais permissividade com a promessa de satisfação emocional e pessoal. Os cachorros entram nessa equação como uma possibilidade de alcançar essa satisfação de forma mais fácil do que seria numa relação interpessoal, afinal, os cães nos oferecem o famoso “amor incondicional” não é mesmo? A própria definição desse termo embute a ideia de que podemos fazer, ou não fazer, qualquer coisa com eles e seremos amados no final. Veja como o termo em si já traduz uma necessidade unilateral, ou seja, nós recebemos o amor mesmo se não oferecermos nada!

Essa filosofia é utópica, mas acaba sendo usada muitas vezes como justificativa para adquirir um cachorro. Eu acredito que muitas crianças de hoje tem sido criadas usando a mesma premissa. Existe muita projeção dos adultos em crianças, especialmente no sentido de liberdade de expressão e escolhas. As crianças tem muito mais do que precisam, tem muito mais poder de opinião do que deviam, tem muito mais liberdade do que podem gerenciar e muito pouca noção de respeito pelo outro. Tudo isso em nome do dito amor que os pais esperam receber em troca. O mesmo acontece com os cães da era moderna.

É muito mais fácil pensar em situações de negligência, violência e maus tratos deliberados como os grandes pilares que desencadeiam comportamento negativo em cães. Esses casos infelizmente existem, não só quando se trata de cães, mas quando se trata de crianças também. Porém, o outro extremo são os casos aonde o excesso de liberdade, de permissividade e o foco exclusivo na relação emocional projetada por nós, criam cães, e até mesmo crianças, quase impossíveis de conviver. Esse é grande tema que precisa ser mais seriamente discutido.

educação canina

Eu acredito que todos os profissionais que trabalham com comportamento canino encontram casos com semelhantes características, todos os dias, em seus atendimentos. As famílias tem sido bombardeadas com informações apelativas constantemente. É como se o marketing atual literalmente transformasse os cachorros em vítimas que precisam ser salvas por nós humanos o tempo todo. Todos os cães, agora, devem ter tudo que querem, fazer tudo que querem, e ai de nós se tentarmos contraria-los! Tudo virou maus tratos, até mesmo o adestramento. No final é tudo uma grande projeção.

Veja a como funciona o processo de manipulação:

  1. Inundar a internet com casos drásticos de negligência, fazendo deles a regra. Quanto mais cães em estado de miséria forem mostrados, mas sensíveis ficaremos em relação a causa animal. Mostrar cães extremamente mimados como exemplos de contrastes ideais (videos de cães que destruiram a casa e os donos chegam e acham engraçado, videos de cães rosnando e as pessoas descrevendo como se fosse sorriso, videos de cães puxando na guia sendo descritos como cães alegres e etc.).

  2. Expandir a noção de maus tratos para tudo! Seja na escolha do cão (cães de raça não pode mais), seja na forma de convívio (cachorro tem que ter acesso à casa toda o tempo todo), seja na comunicação (tem que falar com cachorro como se ele fosse um bebê) e em tudo que seu cão usa (equipamentos de treinamento nem pensar!). Toda forma de disciplina, restrição e intervenção é vista e interpretada como maus tratos.

  3. Propor soluções que alimentam a filosofia utópica, que geram uma boa receita. Treinamento puramente positivo, sem correções, sem punições. Normalmente sem prazo para terminar e sem promessas de real solução. Muitos brinquedos, muitos espaços que promovem “diversão”, sem necessariamente considerar a segurança e real experiência que os cães podem ter ali. Muitas roupinhas, caminhas, lacinhos e acessórios da moda, sempre focando no visual, sem considerar as reais necessidades do animal. Ah, não podemos esquecer das festinhas de aniversário, e dos eventos comemorativos também! Esses são os momentos mais claros de projeção humana, com um custo razoável, que nada tem a ver com os cães.

  4. Estabelecer a divisão. Ou você faz parte de um lado do extremo ou do outro. Se você opta por qualquer alternativa diferente das citadas acima, ou se você tem uma postura ou opinião diferente, você será automaticamente excluido do contexto. Esse ponto é super relevante porque toca na necessidade humana de pertencer. Nós humanos, como os cães, somos seres sociais, e não fomos criados para viver em isolamento. A exclusão social tem um peso enorme para muita gente e acaba, muitas vezes, se tornando um divisor de águas na hora de definir que tipo de vida teremos com nossos cães.

  5. Criminalizar a oposição. Uma vez completas as 4 fases, o que resta é atacar a quem discorda dessas posições. O público que consome e já absorveu essas filosofias serve como guerreiro virtual e pessoal ativo no ataque direto à quem propõe qualquer coisa diferente. Novamente essa é uma técnica que funciona, já que toca novamente na habilidade de defesa e confronto das pessoas. Lembrem que estamos vivendo numa época aonde as pessoas são mais frágeis, logo, nem todos tem a habilidade de lidar diretamente com críticas. Muitos novos profissionais e até famílias desistem de seguir um caminho mais sensato da vida com cães, com medo dessa criminalização, reduzindo o grupo à poucos.

Vejam que, se falarmos de cães no universo urbano, sempre vamos precisar analisar os seres humanos envolvidos para entender com clareza as reais raízes dos problemas. Eu comecei esse texto falando de analise de comportamento humano, e termino falando do mesmo. Seja com cachorros, crianças, adultos, familiares, amigos e parceiros, a regra é a mesma: a forma como vivemos com eles dita como eles se comportam conosco, sempre. Se somos coniventes, se aceitamos tudo, abrimos mão na nossa habilidade de opinar, impor e intervir. Essa postura pode nos levar a situações drásticas, não só com humanos, mas com cães também.

Se abrimos mão do nosso lado crítico, nos tornamos pessoas fáceis de manipular, e viramos presas fáceis para aqueles que tem outras agendas em mente, não necessariamente considerando o que é melhor para nós ou para nossos cães. Nós somos um produto do que praticamos e consumimos diariamente. Somos um reflexo do que vemos na televisão, na internet, nos ambientes sociais, do que lemos em livros e revistas, do que ouvimos e do que vivemos. Cabe a nós escolher o que queremos consumir, e saber filtrar cada informação com bom senso e habilidade crítica de interpretação para absorver o que realmente é construtivo.

Lembrem: ser forte não é ser cruel, ser um líder não é ser um opressor, ser crítico não é ser chato, ser exigente não é frescura. Educação não é limitação, mas sim o caminho para liberdade responsável. Intervenção, correção e punição são atos de zelo, que se aplicados nos momentos corretos, garantem a segurança e previnem problemas no futuro. Amor, de verdade, envolve responsabilidade, direção, consistência e clareza de informação, todos os dias, em todas as situações, sem máscaras, sem desculpas, e sem omissões. Não prive seu cão, seu filho, ou seu ente querido disso.