Confissões de uma treinadora de cães: Capítulo 02.

Hoje eu quero dividir com vocês alguns dos desafios que nós, treinadores de cães, enfrentamos todos os dias na nossa rotina de trabalho. No capítulo anterior eu mencionei sobre a escolha e a filosofia de trabalho de cada um de nós, e como esse caminho pode nos levar a fazer escolhas difíceis que podem comprometer até o nosso orçamento de vida. Vamos falar sobre alguns desses obstáculos.

Quando eu falo sobre filosofia de trabalho, eu estou falando sobre a sua identidade como profissional, no que você acredita, e com base na sua experiência, o que você se propõe a fazer com cada caso que atende. Estamos falando aqui de técnicas de treinamento, a escolha de equipamentos e rotina de atividades que envolvem o cão e sua família com segurança e efetividade nos treinos. 

Um grande paradoxo para muitos novos profissionais é se manter fiel ao que acredita ou ceder à vontade do cliente pela necessidade do trabalho. Exemplos simples são: 

  • O cliente tem dois cães da mesma casa que brigam, mas não estão dispostos a usar a caixa de transporte para gerenciar a rotina de treinos e manejo dos cães na casa. Você abre mão do cliente porque sabe que não vai dar certo, ou você cede, pega o trabalho, mesmo sabendo que pode dar errado, porque precisa do dinheiro?

  • O cliente tem um cão muito reativo nas caminhadas, mas só aceita usar uma coleira peitoral como equipamento de condução. Você abre mão do cliente, ou cede, tenta ver no que vai dar, mas não perde esse dinheiro? 

Esses são apenas dois exemplos entre milhares que eu poderia citar, mas que mostram momentos de possíveis conflitos que o profissional pode passar. Claro que existe um diálogo com cada cliente e instruções e esclarecimentos são passados previamente antes dessa decisão, porém, são escolhas como essas que definem quem você vai ser como profissional. Não é fácil abrir mão de trabalho, especialmente quando estamos começando nessa carreira, e muitos perdem suas identidades e o próprio prazer pelo trabalho quando passam a abrir mão daquilo que acreditam e sabem fazer bem, pelo que é mais conveniente financeiramente falando. 

Eu não sou hipócrita e vou ser bem clara aqui: todos nós queremos ver os frutos do nosso trabalho pois dependemos dele para sobreviver, mas existe uma linha bem fina entre esse compromisso com o que acreditamos e a rendição ao que é mais fácil. Sem sombra de dúvidas, é bem mais difícil se manter fiel a sua filosofia do que ceder e ganhar mais dinheiro, mas essa é uma armadilha que custa caro à longo prazo. 

Eu já passei muitos casos para frente e deixei de atender muita gente quando entendi que esse dinheiro me traria mais frustração do que satisfação. Quando ganhamos mais experiência e entendemos o que funciona de verdade, fazer de outra forma, para não ter que desagradar o cliente, se torna a maior das frustrações. É como se o seu sonho, de trabalhar com aquilo que você realmente gosta, desmoronasse e agora você é mais um prestador de serviços que trabalha apenas para sobreviver, ou seja, você destrói seu próprio propósito inicial. 

Mostrar um bom trabalho e saber argumentar sobre a sua filosofia e técnicas de treinamento é uma arte, já que não estamos falando de um debate ou confronto direto, mas sim de uma apresentação conclusiva sobre resultados reais. Eu não vou negar que isso pode se tornar muito cansativo e repetitivo, por isso eu dedico muito tempo na criação de vídeos e conteúdos que podem ser usados a meu favor na hora dessa decisão. 

Talvez a grande sacada de um bom profissional seja criar um bom portfolio visual com exemplos de trabalhos contínuos, em vídeos, que fazem esse filtro de clientes naturalmente. Dessa forma, um cliente pode ter acesso a esse material, e tomar suas decisões antes mesmo de te conhecer. Isso me ajudou muito e fez toda a diferença na escolha dos meus clientes. 

Eu tenho que admitir que esse formato facilita, mas não elimina a necessidade de saber reforçar essa argumentação diariamente, em cada atendimento presencial. Todos os clientes vão ter dúvidas e mesmo tendo acesso à tudo que você produz de conteúdo, ainda assim você vai precisar fortalecer e validar o que você faz constantemente. De alguma forma, isso nos força a trabalhar a nossa mente e a nossa habilidade de comunicação todos os dias. 

Essa etapa não tem fim, e é aqui que mora um grande obstáculo. Como repetir a mesma coisa todos os dias, de formas diferentes, sem perder a motivação? O elemento motivador sempre vai ser a variável de dificuldade, que normalmente é o cliente. É ele que faz sua mente se manter ativa e eficaz na hora de criar a sua argumentação e é ele que te força a ser criativo e cirúrgico nas suas técnicas de trabalho. Afinal estamos sempre lidando com novatos e pessoas quase que inexperientes na área.

Esses dias eu estava pensando sobre uma analogia interessante. Imagine se o adestrador fosse um cabelereiro. Nessa profissão o cliente chega no salão porque precisa cortar o cabelo. Ele quer melhorar a sua aparência e precisa da sua ajuda. Para que você, o cabelereiro, possa fazer o seu trabalho, o cliente precisa ficar sentado na cadeira, parado, sem mover a cabeça e o pescoço, para que o resultado fique satisfatório. No mundo do adestramento, esse cliente quer a sua ajuda, mas você precisa fazer esse mesmo trabalho com ele se movendo e tentando sair da cadeira o tempo todo. Mesmo precisando da sua ajuda, ele reluta, questiona, tenta fugir da situação cria justificativas para não fazer o que você pede dele naquele momento. Esse é o desafio nosso em muitos casos.  

A resistência de muitos clientes nos força a melhorar e aprimorar cada vez mais a nossa habilidade de trabalhar em situações longes do ideal. O ponto aqui não é brigar de frente nem ceder, mas sim encontrar uma forma de comunicar o que precisa ser feito de maneira que faça sentido para aquela pessoa. É importante também saber quando o cliente não é pra você. Isso acontece e esse momento precisa ser reconhecido também. 

Eu gosto da analogia do cabelereiro porque nesse cenário existe um limite até aonde o profissional pode ir. No final das contas, se o cliente quiser mesmo esse corte de cabelos, em algum momento ele precisa se render. O mesmo acontece com os clientes que buscam treinamento para os seus cães. Não somos mestres dos magos e nosso trabalho só se torna eficaz quando o cliente está disposto a seguir a nossa diretriz. 

O filtro de clientes acontece naturalmente quando somos honestos no nosso diálogo e deixamos claro o que pode ser esperado como produto do nosso trabalho. O segredo é não levar para o lado pessoal, e seguir em frente. Sempre tem alguém lá na frente que vai apreciar o que você faz. 

Uma dica importante: parem de buscar validação em outros profissionais. Essa é uma armadilha que pode te manter preso para o resto da sua carreira. Conheci muitos novos profissionais que vivem esperando essa validação dos outros e acabam nunca crescendo sozinhos. Lembrem que cada um de nós desenvolve um jeito particular de fazer seu trabalho. Sempre vamos ser diferentes. Abrace a sua versão, aprenda sempre todos os dias, seja coerente, honesto e eficaz. O mundo vai te dar de volta o que é seu por merecimento. 

No próximo capítulo eu vou descrever alguns dos casos interessantes que já atendi e como em muitos deles, a habilidade de comunicação e compreensão de dinâmica familiar, e suas limitações, foi determinante para o sucesso do treinamento. 

Até breve.